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Mensageira das revelações de Fátima

D. José Policarpo
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Homilia de D. José Policarpo nas exéquias da Irmã Lúcia

Senhor Bispo de Coimbra; Senhores Bispos; excelentíssimas Autoridades; meus queridos amigos, irmãos e irmãs: A morte da Irmã Lúcia era inevitável. É um momento de comoção e é com uma certa surpresa agradável que verificamos que foram poucos os portugueses que lhe ficaram indiferentes. No entanto, esta cerimónia solene que estamos a celebrar não é especial porque a Irmã Lúcia era especial. Ela é a liturgia da Igreja para uma crente que viveu a sua vida procurando seguir o Senhor na fidelidade, percebendo a sua vontade e o seu desígnio, à busca do seu rosto. Por isso mesmo, este é talvez o momento privilegiado para percebermos o que de extraordinário aconteceu na vida desta mulher, que se insere na normalidade de uma vocação cristã. O que de extraordinário ao nível da fé e da religiosidade acontece, se não se inserir na normalidade da vocação cristã, corre o risco de não ser verdadeiro. Tudo começa numa escolha e num chamamento. A fé cristã começa sempre numa eleição de predilecção, numa palavra escutada, numa mensagem de amor consentida e sentida, num desejo de Deus acerca de nós. Começa tudo quando uma experiência do Divino se torna tão forte que não a podemos ignorar, tão enraizada na nossa consciência que nem as nossas dúvidas a podem anular. Quando um projecto de Deus é anunciado com tal clareza só me resta procurar segui-lo e ser-lhe fiel. E toda a vida cristã, para aqueles que procuram ser fiéis a este chamamento, é esta longa espera, esta longa caminhada daquelas virgens fiéis e prudentes que a parábola do Evangelho nos aponta simbolicamente e que aguentam, em todas a vicissitudes, em todas as dificuldades, porventura em todas as trevas, que aguentam a sua luz acesa à espera que venha o seu Senhor. Até àquele dia, como dizia a primeira leitura do profeta em que então, num face a face, serão enxugadas todas as lágrimas, anuladas todas as dores, cumuladas todas as tristezas. O profeta não se refere apenas às simples dores humanas que sabemos são inerentes ao próprio existir humano, refere-se também às tribulações da fé. Esta caminhada de fé é tantas vezes uma caminhada sofrida, experimentada pela dúvida, pela tentação, pela busca - e nós sabemos, pela história da Irmã Lúcia, ela própria no-las testemunhou nas suas memórias, nem ela foi dispensada desse tributo à dor, à obscuridade, à busca aflita da luz de Deus. Logo numa das primeiras aparições, a Lúcia, em nome dos três, perguntou a Nossa Senhora: “Vossemecê quem é? E o que quer de nós?”. Essa pergunta que ela dirigiu a Nossa Senhora exprime o grito ansioso de todos os crentes, tantas vezes dirigido ao nosso Deus, a Jesus Cristo a quem entregamos a nossa vida, na profundidade da nossa fé. E Tu quem és Senhor? O que queres de mim? É uma pergunta que tem sempre uma resposta; uma resposta que se vai aprofundando, que se vai radicalizando, que se vai por ventura iluminando até àquele dia – neste momento ela já o conhece - em que essa resposta será dada definitivamente. A uma vocação corresponde, normalmente, uma missão. Deus chama-nos e confia em nós; Deus chama-nos e envia-nos. A maneira como a Lúcia narra nas suas memórias as aparições de Nossa Senhora, na simplicidade de crianças, é tão claro que elas recebem aquela visita inesperada do Céu como uma missão, algo que o Senhor tinha para lhes pedir a elas, uma missão que tem a ver com a missão da Igreja, que tem a ver com aquele Mistério que atravessa a história dos homens que é o projecto de bondade e de amor transformador para todos quantos se quiserem abrir a ele. Uma missão que tem em comum a própria intuição do Evangelho, “arrependei-vos e acreditai”, uma missão que cada um deles exerce à sua maneira. Um dia, a Lúcia perguntou a Nossa Senhora se o Francisco e a Jacinta iam para o céu. E Nossa Senhora disse-lhas que sim, que os vinha buscar muito brevemente para o céu, mas que dela queria que ficasse mais algum tempo. Deu-lhe a entender que a missão dela não tinha acabado. Há uma parte desta missão específica da Irmã Lúcia que nós conhecemos. Ela foi a porta-voz, ela foi a mensageira das revelações. Francisco era um contemplativo, só gostava de estar calado a adorar o Senhor. A Jacinta, na sua emotividade de criança, ficava de tal maneira comovida e possuída do que via e ouvia, mas não dizia nada, ofereceu-se: são lindas as poucas as palavras que lhe conhecemos, já em Lisboa no hospital D. Estefânia, onde ela entrega a sua vida. A Lúcia é sempre aquela que fala com Nossa Senhora. Hoje estamos a ler na liturgia um texto do livro do Êxodo, em que Moisés diz a Deus, que o envia para enfrentar o faraó, “eu não sei falar, eu não sou um bom falador”. E Deus diz-lhe: “tu vais e Aarão falará por ti”. Lúcia é aquela que fala, que comunica e que tem de tal maneira isso a peito como missão que comunica incansavelmente. Espero que muito brevemente possamos ter acesso, com publicações bem preparadas para o povo de Deus, a esse manancial imenso de doutrina espiritual na linha da Mensagem de Fátima que esta mulher tão simples, mas tão grande de coração escreveu. Há uma parte da sua missão que ela levou para o Céu no seu coração. A Mensagem de Fátima é um desafio à penitência, à conversão e à contemplação. Não foi por acaso que mudou de Ordem Religiosa e foi para o Carmelo. Penso que na última fase da sua vida ela assumiu, claramente, a oração como missão. Nós estamos comovidos porque a Irmã Lúcia é a Irmã Lúcia. Com ela viva, todos os acontecimentos de Fátima eram nossos contemporâneos. A sua morte marca uma fronteira. A partir deste momento, Fátima é um grande Santuário, uma grande mensagem, uma grande tradição espiritual que nós recebemos de Deus, que nós recebemos de gerações e gerações de peregrinos, penitentes e orantes que tomaram a sério, contra tudo e contra todos, a simplicidade da mensagem. Estamos comovidos não tanto porque ela morreu. Estamos comovidos porque hoje, entre Fátima e o Céu, uma nova ponte se estabeleceu. Comecei esta homilia, e termino-a como comecei, por dizer que a morte de Lúcia nos comoveu e sensibilizou. Eu, pessoalmente, fui particularmente tocado pelo volume de reacções e das mensagens que, inesperadamente, surgiram de todos os quadrantes. Eu queria aqui agradecer em nome da Igreja a todos aqueles, pessoas e instituições, que nos fizeram chegar mensagens escritas, ou através de gestos e de decisões tomadas, ou de declarações feitas em público, manifestaram cada um à sua maneira, mas todos com grande respeito, que sentiram na morte desta mulher qualquer coisa que tocava Portugal. E quando uma comunidade nacional é capaz de reconhecer numa religiosa, na simplicidade de uma religiosa discreta, mas na grandeza de uma espiritualidade vivida, um símbolo que fala a todos, esse é certamente para nós um sinal de esperança. A Lúcia hoje, junto de Deus, certamente terá perguntado outra vez a Nossa Senhora: “vossemecê o que quer?”. Oxalá ela pergunte não tanto acerca dela, mas que lhe diga: “E vossemecê o quer deste Portugal, desta terra de Santa Maria?”. Sé Nova de Coimbra, 15 de Fevereiro de 2005, D. José Policarpo, Cardeal-Patriarca, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa


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