Alertou o bispo das Forças Armadas e de Segurança na homilia da Missa Crismal, celebrada hoje, na Igreja da Memória, em Lisboa.
1. Na carta endereçada aos sacerdotes por ocasião de Quinta-Feira Santa de 2005, e redigida no período de internamento hospitalar, o Papa João Paulo II emite o voto de que a fórmula da consagração: “Tomai e comei. Tomai e bebei. Isto é o meu Corpo. Isto é o meu Sangue”, constitua uma “fórmula de vida”.
Esta Missa Crismal traduz a comunhão do presbitério diocesano com o bispo e com toda a realidade pastoral a quem é votado, mediante a confirmação das opções um dia assumidas.
A participação de membros das Forças Armadas e de Segurança, sobretudo através de representantes dos Conselhos Pastorais de cada uma das suas unidades do âmbito de Lisboa, ou de situações geográficas mais próximas, a que se quis associar o Senhor General Governador de Lisboa, o que muito nos honra, manifesta o mundo a que nos destinamos, onde as capelanias são “fórmulas de vida eucarística” pela doação do que vão criando e servindo.
Conforme a Palavra proclamada, à semelhança de Jesus Cristo deveremos dizer:
“O Espírito do Senhor está sobre mim para anunciar a boa nova (...), para proclamar a redenção (...), para restituir a liberdade(...)”
Atento a estes apelos, e às razões do Ano da Eucaristia, aproveito esta oportunidade única para salientar dimensões pastorais concretas desta “cultura eucarística” a que somos chamados.
2. Em obra recentemente publicada, um conhecido intelectual português, citando a seguinte passagem do discurso de Thomas Mann, na recepção do Prémio Nobel: “só um materialista é capaz de professar o espiritualismo mais consequente”, pormenoriza que matéria tem a etimologia de “mater”, acrescentando: “Eu sou fidelíssimo à mãe de que nasci, à mãe que me é, e me será sempre, naquilo que terei de melhor”. Por outras palavras, o defensor da matéria, é, na sua convicção, um comungante de valores para além da matéria, tal como a mãe reside no que há de melhor no filho”. E, mais adiante, sublinha o mesmo autor: “Graças ao dogma da Incarnação, o cristianismo foi a primeira religião materialista”, ou seja, Deus apareceu em roupagem concreta e em situações palpáveis.
Pois bem. A celebração da morte e da ressurreição de Jesus, na expressão eucarística, associa-se à mãe terra que nos oferta o pão, nos lega o vinho e é lugar do trabalho transformador. Na sua face misteriosa de vitória pascal, há um rosto humano próprio, o qual é um Deus escondido no nosso meio, como silenciosos e plenos de mistério são o pão que nos alimenta e o vinho que nos salva. Na matéria da terra mãe e da humanidade, Deus se tornou manifesto.
A Eucaristia é uma entrega libertadora, uma refeição quente, uma proximidade de Alguém com Quem nos fazemos iguais.
Princípio e fim de toda a acção da Igreja, a Eucaristia é o ponto de chegada de quem se foi acercando da pessoa de Jesus Cristo e descobrindo aspectos ignorados através de uma cultura apropriada à sua idade e conhecimentos, e, da verdade da vida de quem lhe transmitiu essas certezas.
Tudo parece tão humano, tão demasiadamente humano nesta história de fé da Igreja e de cada um de nós. Mas, na realidade das nossas funções não há lugar para materialismos que tudo reduzem às únicas dimensões do que se vê e vive, indiferentes a outros planos, insensíveis a outros saberes, afastados de outras culturas e preocupações.
3.
3.1 A Celebração Eucarística, no nosso mundo das Forças Armadas e de Segurança, deverá pressupor um ensino muito adaptado através de uma formação de catequese de adultos, à semelhança da gestão de uma cultura de cidadania, posta ao serviço de quem, connosco, quer assumir a seriedade das responsabilidades cívicas. Esta aprendizagem do saber cristão, disponível a quem o desejar, tem como objectivo responder a dúvidas, suscitar o gosto da aprendizagem, dar razões à fé e fundamentar convicções.
Dada a dificuldade compreensível de, nos fins de semana, se registar um número reduzido de pessoas nas nossas unidades, a Eucaristia celebrada aí, noutras situações, à semelhança do mistério eucarístico que ocorre em algumas capelanias, ao domingo, com a participação de pessoas do exterior, deverá constituir o robustecimento de uma comunidade, que, gradualmente, se vai construindo e fidelizando.
Deveríamos fazer brotar comunidades eucarísticas vivas, enquanto fraternas e dinâmicas, que celebram e alimentam a fé e as suas intenções missionárias, até para além do horário profissional, como ocorre em movimentos laicais. Longe de ser um sector à parte ou um gueto, a comunidade que aglutina e nutre quem partilha uma idêntica crença, é uma comunidade que se abre a todos os horizontes humanos e espirituais.
3.2 A Eucaristia é a criação do outro, porque o próximo é-o enquanto alguém dele se acerca. Quem é o meu próximo?
É aquele de quem eu me aproximei.
Próximas de nós são as aflições do maremoto do sudoeste asiático ou dos assassinatos de agentes da Polícia de Segurança Pública, a cuja corporação testemunhamos a nossa comunhão solidária e a esperança de condições cada vez mais adequadas no âmbito da segurança.
O nosso Deus, em Jesus Cristo, é a proximidade da Eucaristia, é a visibilidade invisível do amor, é o “fica connosco” do Caminho de Emaús. O Deus feito carne é o Deus feito pão para alimento do mundo.
Deveria ser normal a atitude realista do nosso pastoreio e da nova evangelização ao ter sempre, na devida conta, os incómodos e as perversões que atingem o universo familiar, a estabilidade sócio-económica, a normalidade de se ter acesso a um emprego, o gosto cultural, o respeito pela verdade de pessoas e instituições, a responsabilidade e seriedade do mundo sexual, a dignidade de uma carreira profissional, sem atropelos e injustiças. Quanto mais o pão da Eucaristia é adoração e alimento, mais notória se torna a ausência do pão numa sociedade.
Sermos mediadores entre a Eucaristia e os sobressaltos da sociedade portuguesa é uma missão tão exigente e eficaz que o próprio mundo laico, assim creio, dela nunca nos poderá dispensar.
Prosseguiremos com alegria a missão que Jesus Cristo Sacerdote depositou na vida de cada um de nós. A “fórmula eucarística” da nossa existência é também o júbilo de todos os que connosco caminham, fortalecendo-nos e apoiando-nos.
Lisboa, 23 de Março de 2005
Januário Torgal Mendes Ferreira
Bispo das Forças Armadas e de Segurança