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“Noite Pascal, Vigília da Vida”

D. José Policarpo
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Homilia do Patriarca de Lisboa na Vigília Pascal

1. Esta solene Vigília da Páscoa foi restaurada no contexto da reforma litúrgica, da qual é o verdadeiro “ex-libris”. A reforma litúrgica foi um dos movimentos que antecedeu o Concílio Vaticano II e que significou a compreensão da Liturgia como a expressão mais completa da Igreja como realidade pascal, Povo que nasceu da Páscoa, cujos membros se deixaram, pelo baptismo, sepultar com Cristo na morte, para poderem partilhar, com Ele, a vida nova da ressurreição. O Povo da Aliança deu lugar ao Povo dos baptizados, que encetou a etapa definitiva da História da Salvação, onde a fecundidade recriadora da Páscoa de Cristo há-de dar os seus frutos, transformando a humanidade à imagem da plenitude de Cristo. A Vigília significa a atitude mais profunda e permanente deste Povo: está na expectativa de que se cumpra a gloriosa esperança, conduzida pelo Espírito, não desanima com a longa duração desta transformação pascal da humanidade, sabe que o triunfo definitivo de Jesus Cristo ficou garantido na Sua ressurreição e que os males e as ambiguidades do tempo presente serão assumidos e purificados nessa lenta maturação da “nova criação”. Uma Igreja que celebra a Páscoa espera o triunfo definitivo de Jesus Cristo, na criação e na história. É essa esperança sólida que nos comunica o Apóstolo Paulo: “Penso que os sofrimentos do tempo presente não se comparam com a glória futura que deverá ser revelada em nós. A própria criação espera com impaciência a manifestação dos filhos de Deus (…). A criação abriga a esperança, pois ela também será libertada da escravidão da corrupção, para participar da liberdade e da glória dos filhos de Deus” (Rom. 8,18-21). Depois da Páscoa de Jesus, não apenas a Igreja, Povo nascido da vida nova do ressuscitado, mas também a criação e a humanidade inteira estão em Vigília. A duração e o tempo são elemento importante na pedagogia de Deus. A pressa é atitude daqueles que, na exiguidade da sua duração, não são capazes de se abandonar à dimensão do tempo de Deus que é sinónimo de eternidade. Deus não tem pressa. A plenitude da criação está garantida no mistério do acto criador retomado, na humanidade pecadora, no acto redentor. Num como noutro, a plenitude do fim está contida, garantida e anunciada no mistério do início. Só podem viver o “tempo humano” com esperança aqueles que se abandonam à largueza de horizonte do “tempo divino”. E isso é estar em estado de Vigília. Esta é mais do que uma expectativa. É a confiança de quem espera que se manifeste um pouco mais, na nossa história e na nossa carne, essa plenitude já iniciada e que está a germinar, em silêncio, como o fermento na massa. Esta Vigília fundamenta a nossa esperança no destino positivo da criação e da história. 2. A estrutura litúrgica desta Vigília exprime a certeza da Igreja de que Cristo ressuscitado recapitula em Si todas as coisas, a criação, o homem e a história. E recapitular quer dizer que todas as coisas encontram n’Ele a sua verdade, do caminho andado e do que ainda há para andar. Que interessa o tempo que ainda falta até à manifestação definitiva do Seu triunfo, se nós, os membros do Seu corpo, podemos viver desse triunfo no tempo presente? Ele é o centro da história humana, encerra em Si mesmo a promessa da vitória sobre todas as fragilidades e vicissitudes do nosso peregrinar humano. Ele é o Alfa e o Ómega, o princípio e o fim. Esta é a Vigília entre todas as vigílias. Fazendo uma unidade com a do Pentecostes, exprime a grande perspectiva da salvação a acontecer. Contempla-a em três planos convergentes: a da criação que, apesar de marcada pelo pecado, continua à procura da sua verdade; a da humanidade que, apesar de ateísmos e idolatrias, continua a gravar no íntimo do seu ser o rosto de Deus; a da história da salvação, vivida pelo Povo escolhido, a quem foi revelado o mistério, e que, hoje, na Igreja, tem consciência do segredo da criação e da história: Jesus Cristo ressuscitado e o Seu Espírito que Ele nos comunica. Pela nossa meditação, nesta noite, passam todas estas aventuras, a da criação, a da história, a do Povo de Deus, todos à procura do seu sentido e verdade definitivos. Detenhamo-nos um pouco na aventura da Igreja. 3. Para a Igreja o início da longa peregrinação é o baptismo. A sua qualidade de “novo nascimento” define-o como um início. Toda a sua peregrinação é o tempo de maturação desse começo de vida, com as vicissitudes próprias de toda a vida que nasce, cresce, vence etapas e dificuldades, até à sua plenitude. A existência cristã é uma vida que recapitula a vida, lhe desvela o mistério e lhe garante a plenitude. Como Cristo recapitula em Si todas as coisas, a Igreja recapitula, no seu mistério, a humanidade inteira. Sacramento de salvação, esse é o sentido profundo da sua presença no mundo: ser sinal da plenitude de vida em Jesus Cristo. O desabrochar da vida baptismal consiste na descoberta de Jesus Cristo, pois esse novo início acontece, porque a nossa vida se uniu à de Jesus Cristo. A partir desse momento, é impossível viver sem Ele, experimentar o mistério da Sua vida, assumir a radicalidade do Seu dom e a grandeza da Sua fidelidade, fruir já do seu triunfo e confiar n’Ele, nas vicissitudes de quem começa. Isso gerará uma intimidade crescente com Ele, numa relação com a profundidade do amor. O cristão sabe que Ele é o seu alimento, a sua força, aquele que indica o caminho e o percorre connosco. São Paulo tinha razão quando dizia: “para mim viver é Cristo”. Unir-se à vida de Jesus Cristo, no baptismo, tem o realismo e o mistério de toda a verdadeira vida. Identificar-se com a vida de Cristo, significa deixar-se sepultar, com Ele, na morte, deixar morrer o homem velho, aceitar a radicalidade da conversão. É que a frescura dessa vida nova é enxertada na nossa vida humana, “homem velho” na linguagem de São Paulo. É do sacrifício generoso dessa morte que brotará a participação no triunfo da ressurreição, que frutificará nos frutos próprios de uma vida segundo o Espírito: a intimidade com Deus, o amor dos irmãos, a pureza de um coração novo, o assumirmo-nos como corresponsáveis, com Cristo, pela salvação do mundo. A fidelidade baptismal é uma longa caminhada, uma longa vigília, é o caminho dos discípulos de Cristo que consiste em seguir o Senhor. Ele próprio nos disse: quem quiser ser Meu discípulo, tome a sua cruz e siga-Me. A Eucaristia, como sacramento da Páscoa, é o alimento para essa caminhada. Ela é sempre ponto de chegada e ponto de partida. Quem celebra a Eucaristia, oferece sempre a vida vivida, e percebe que não pode parar, que o momento do repouso ainda não chegou, pois nos resta um longo caminho até vivermos plenamente de Jesus Cristo. O baptismo faz-nos perceber, de forma definitiva, que viver é caminhar, não ter medo do caminho, vencer dificuldades e cansaços. E porque a nossa nova vida é uma vida em Cristo, perceber que essa caminhada só é possível com Ele. 4. Trata-se de uma caminhada festiva, tem a alegria das núpcias e por isso, do princípio ao fim, podemos cantar aleluia. No baptismo, Cristo purifica a Igreja para se unir a ela na festa das núpcias, como ensina São Paulo: “Cristo amou a Igreja e entregou-Se por ela. Purificou-a com o banho de água e santificou-a pela palavra, para apresentar a Si Mesmo, uma Igreja gloriosa, sem mancha, nem ruga, sem defeito algum, mas santa e imaculada”. Esta festa das núpcias é a alegria cristã, fruto da intimidade do amor de Cristo ressuscitado, que pode inundar o nosso coração mesmo nos momentos mais difíceis e duros da caminhada. Esta festa das núpcias é a alegria pascal. Deixemos que ela inunde o nosso coração, os que são hoje baptizados e iniciam a caminhada, os que concluem o caminho de coerência baptismal, todos nós que o Senhor chamou e regenerou pelo baptismo e estamos dispostos a assumir, nesta noite, a frescura do entusiasmo inicial. † JOSÉ, Cardeal-Patriarca


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