Nota de D. Joaquim Gonçalves sobre o Ano paulino D. Joaquim Gonçalves 27 de Setembro de 2008, às 15:23 ... «O Ano Paulino: a força do autógrafo» 1 – Quase todas as semanas somos informados da apresentação de livros ou de pinturas de artistas desta região de Trás-os-Montes e Alto Douro aos amigos dos autores e à sociedade em geral. Haverá nesse gesto a legÃtima promoção das obras apresentadas, mas há também o sentimento de «dar um rosto» à obra apresentada. A presença fÃsica do autor e o autógrafo gravado a quente em cada obra humanizam a obra, dão-lhe calor, ajudam o público a senti-la por dentro, retirando-a do anonimato da prateleira ou da frieza de uma exposição. A obra artÃstica perde o tom frio de um objecto comercial igual a tantos outros e passa a ser um ser vivo, saÃdo do «coração» do autor ali presente. 2 – Isto pode ajudar-nos a perceber a originalidade e o mistério da BÃblia. O seu autor está sempre presente junto do leitor. De uma edição da BÃblia pode alguém fazer a sua apresentação por causa da sua antiguidade, do luxo da encadernação ou das iluminuras do texto, mas não da mensagem nela contida. O melhor da BÃblia não é a expressão artÃstica, mas a mensagem de Deus que nos fala através dos textos e dos recursos artÃsticos. É o que se quer dizer ao chamar-lhe «livro inspirado»: o autor da BÃblia é o próprio Deus e só Ele pode «dar autógrafos», imprimir «dedadas» no coração do leitor. Isto não quer dizer que o texto da BÃblia haja sido ditado letra a letra ou frase a frase pelo próprio Deus, como dela pensavam os antigos rabinos e pensam os muçulmanos acerca do seu livro «O Corão». O texto bÃblico foi redigido por homens que lhe imprimiram o seu cunho pessoal, utilizando os elementos históricos e literários de que eram possuidores, podendo chamar-se por isso verdadeiros «autores» dos textos. É possÃvel aproveitar os muitos e belos recursos artÃsticos presentes na BÃblia, como fez Camões nos «LusÃadas» para evocar a batalha de Aljubarrota, mas ficar aà seria um empobrecimento do texto bÃblico, uma espécie de laicismo. Outro dos elementos usados pelos escritores para a revelação da mensagem de Deus é a história dos antigos Hebreus. Trata-se dos antigos Hebreus enquanto «Povo de Deus». Não se faz, contudo, um tratado rigoroso da história hebraica, pois não é essa a finalidade da BÃblia, mas somente na medida em que isso interessa à finalidade reveladora. Por esse motivo, falar de «inspiração» da BÃblia é diferente de falar de «inerrância» histórica da BÃblia ou ausência de erro: a BÃblia não tem erros acerca da mensagem religiosa a transmitir, mas pode conter inexactidões históricas, geográficas, de astronomia ou de ciências naturais. Os textos do Antigo Testamento foram escritos durante os últimos nove séculos da vida desse povo, antes de Jesus. Após a vinda de Jesus, o Messias prometido a esse Povo, a história posterior de Israel deixa de ser considerada como portadora de qualquer mensagem especial, sem que isso justifique sentimentos de anti-semitismo. Da comunidade nascida dos seguidores de Jesus, a que Paulo chama o novo Israel, nascerão outros textos portadores de mensagem de Deus e que formam a segunda parte da BÃblia ou Novo Testamento, a acrescentar aos que já vinham dos antigos Hebreus. 3 – Ao ler a BÃblia é, portanto, indispensável ter consciência de que Deus quer falar ao leitor por meio daquele texto: pela história e por parábolas, por exemplos edificantes e pelo fracasso, por linguagem comum e por números. A BÃblia dirige-se à inteligência e ao coração do homem religioso, ensina e faz sentir. Escreveu o célebre jesuÃta LuÃs Alonso Schokel, professor do Instituto BÃblico de Roma, que «a BÃblia contém doutrina e contém força; no contexto do Logos ensina, no contexto do EspÃrito dá força». Há obras clássicas justamente célebres pela sua mensagem e beleza, como a Odisseia e a IlÃada de Homero, a Eneida de VirgÃlio, o Hamlet de Shakespeare, os LusÃadas de Camões ou o D. Quixote de Cervantes. Essas obras podem ser exemplares de comportamentos humanos e éticos, e de beleza artÃstica, mas não são portadoras oficiais da mensagem de Deus. A BÃblia é o único caso histórico em que isso acontece. É, pois, muito delicado falar dos textos bÃblicos como «as mais maravilhosas histórias do mundo» ou da «magia das histórias da BÃblia», como se ouve dizer na promoção de edições e de filmes, colocando a BÃblia ao nÃvel dos contos exemplares da literatura mundial. Compreende-se a boa intenção, mas alerta-se para a ambiguidade da expressão. 4 – Na fidelidade à proposta do Papa, faça o leitor a revisão da sua vida pessoal e do seu grupo. Os livros litúrgicos usados na Missa (Leccionários e Evangeliários) contêm os extractos mais significativos da BÃblia, dispostos de maneira a fazer compreender o seu dinamismo interno e a mensagem nela revelada. A leitura desses textos pode constituir mesmo uma iniciação à leitura da BÃblia. Compreende o leitor por que motivo se organizam as leituras litúrgicas de modo que a primeira, extraÃda do Antigo Testamento, seja o anúncio do que depois se realiz ou em plenitude no Evangelho, a terceira leitura? O Antigo Testamento é como que a semente, a raiz da árvore que desabrocha no Novo. Compreende por que razão se leva em cortejo o livro dos Evangelhos, e, na altura própria, todos se colocam de pé, incluindo o Bispo e o Papa, e se incensa e beija o livro dos Evangelhos? A palavra proclamada é inseparável de Jesus Ressuscitado, presente pelo EspÃrito Santo. Acha «excessivo e cerimonioso» o tempo dedicado à liturgia da Palavra na Missa (leituras, cântico do salmo, reflexão, silêncio)? É que não se trata de dar uma breve informação jornalÃstica, satisfazer uma curiosidade, mas de interiorizar a mensagem religiosa e essa entra pelos olhos, pelos ouvidos, pelo ritmo, pelo olfacto. Nas celebrações, quando é chamado a fazer as leituras, coloca o leitor brio e sensibilidade afectiva na dicção, na divisão e paragem das frases? Sente que essa arte da proclamação ajuda o ouvinte, prolongando o trabalho dos escritores que escolheram linguagem apropriada para transmitir o mistério de Deus? D. Joaquim Gonçalves, Bispo de Vila Real Ano Paulino Share on Facebook Share on Twitter Share on Google+ ...