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O Ano Paulino: Caminhar com Coração

D. Joaquim Gonçalves
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1- Por motivos sobejamente conhecidos, a palavra «coração» assumiu desde Janeiro passado, na minha vida quotidiana e no contacto diário com a Bíblia, uma ressonância especial. Eu conhecia já a polissemia da palavra, mas ela tornou-se-me agora mais espontânea e consciente. Coração é o órgão que a biologia e a medicina descrevem como responsável pela circulação do sangue no corpo, é quase o moinho da vida, e, nesse sentido, a Bíblia diz que, às vezes, «o coração parece rebentar nas paredes do peito»; mas o coração é também sinónimo do dinamismo mais profundo da pessoa humana: com o coração se entende, com o coração se decide, com o coração se ama, com o coração se pratica o bem e o mal, com o coração se reza, com o coração se faz memória, com o coração se chora, com o coração se canta, com o coração se crê e se espera, com o coração se vê a Deus, com o coração se ouve a sua voz, no coração se escondem os segredos da vida. O coração é a profundidade da pessoa, são as raízes do ser, de modo que «dar o coração» é dar a vida, «desviá-lo de algo» é dar um novo rumo à vida, «afastá-lo» de alguém é rejeitar essa pessoa, é quase odiar! Na Bíblia todas as nossas relações com Deus e com o próximo são designadas como «obras do coração», e, para serem autênticas, essas relações têm de «passar pelo coração». 2- Na cultura europeia, a começar na filosofia grega, fez-se uma separação da inteligência e do coração, e essa ruptura foi crescendo cada vez mais a ponto de se entender a inteligência como a faculdade de análise e reflexão, fria como máquina de calcular e elevada à categoria de maior qualidade da pessoa, cujo elogio consiste em dizer que «é uma inteligência», «um crânio», como dizem os jovens; e o sentimento como mera afectividade cega, algo menos válido e quase indigno do homem culto e, por isso, se diz de alguém que «tem bons sentimentos mas não passa disso». Essa separação acentuou-se no séc. XVII com Descartes (o tal do penso, logo existo, ficando tudo dependurado do pensamento frio), e culminou nos filósofos alemães Kant e Hegel (a ideia é o real). A filosofia de S. Agostinho, que o Papa actual sempre seguiu e segue., ficou fora dessa separação. Daí, a actualidade de S. Agostinho, nomeadamente nas suas Confissões. Nos nossos dias aquela separação da razão e do sentimento incarnou em duas direcções absolutizadas: a técnica e o hedonismo. A técnica é a rainha do chamado mundo do conhecimento, é ela que «decide» o que verdadeiramente existe, o real - o que existe é o que sabemos fazer e produzir (a fórmula dessa atitude pode ser: faço, logo existo); o hedonismo é o império do sentimento, ouvindo-se dizer por todo o lado, de um modo amolecido, quase oposto ao dito de Descartes: sinto, logo existo. Tudo fica, assim, dependurado da técnica e do sentimento: «se eu sei fazer isto, porque é que não hei-de fazer?» e «se não gosto disto, desta comida, da missa, dos livros, não gosto do trabalho: porque é que não respeitam os meus gostos?». Deste modo, ao lado da atitude racionalista e fria do mundo da tecnologia, campeia hoje o mundo das sensações e emoções, e esses dois mundos aí estão de mãos dadas a ocupar todo o espaço intelectual e do trabalho, e o mundo das discotecas com a droga e as fantasias sensuais escondidas a ocupar os tempos livres. São as duas partes do homem partido que se reclamam uma à outra. 3- Tudo isto é trazido para aqui, não para dar lições de filosofia, mas por causa do Ano Paulino que estamos a viver. A Igreja propõe a todos os cristãos uma viagem com Paulo de Tarso, estampado na sua vida e nas suas cartas. Nos textos paulinos o homem que aparece é o homem bíblico, o homem unido e unificado, cabeça e coração, embora já surjam alguns sinais da linguagem grega. Neste sentido, a viagem do Ano Paulino faz-se, portanto, com o coração bíblico, isto é, com inteligência e afecto unidos, a pensar e a sentir, a estudar e a rezar, connosco e com os outros, de um modo semelhante ao que usamos na liturgia da Palavra na Eucaristia: escutando a leitura, analisando o texto, enriquecendo-os com os lugares paralelos, comparando-o com a vida pessoal e social, rezando e cantando. A grande tentação no uso da Bíblia é fugir para o comportamento racionalista ocidental, vaidoso e estéril, a vaidade de acumular curiosidades sobre Paulo e a sociedade do seu tempo, «para saber» e não «para dar volta à vida». Tal atitude faz lembrar a cabeleira de Absalão que só serviu para o enforcar num carvalho da floresta onde ficou dependurado pelos cabelos ao fugir-lhe o cavalo que ele montava em luta contra o seu pai David (II Sam.18,9). Nas relações com Deus é essencial usar o «coração bíblico», a paixão profunda da pessoa, a força interior da reflexão encantada, a audácia alegre, a ternura inteligente e a inteligência aquecida. Permito-me exemplificar esta «atitude do coração» com o modo como Paulo fala da sua conversão: «Cristo apanhou-me quando eu ia para Damasco». «Apanhou-me» é um verbo vivo e inteiriço, inclui a pessoa toda (razão, vontade, sensibilidade, vida real, passado e futuro, realismo e sonho). Faz lembrar a expressão usada pelo profeta Ezequiel para falar da sua vocação - «Iavé apanhou-me pelos cabelos e transportou-me a Jerusalém para eu ver as abominações que ali se faziam; ou a vocação de Habacuc - «Iavé agarrou Habacuc pelos cabelos e transportou-o a Babilónia para que levasse a Daniel as migas de pão que estava a preparar para os ceifeiros. (Ez.8,3, Dan. 14,35). É esta mesma linguagem, inteiriça e vibrante, que Paulo usa na saudação inicial de muitas cartas: «Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado ao apostolado, escolhido para anunciar o Evangelho de Deus que Este tinha prometido antes pelos seus profetas nas Santas Escrituras» (Carta aos Romanos), «Paulo, chamado a ser Apóstolo de Jesus Cristo por vontade de Deus» (Carta aos Coríntios); «Paulo, Apóstolo, não por vontade dos homens nem por intermédio de um homem, mas por Jesus Cristo e por Deus Pai» (Carta aos Gálatas); «Paulo, Apóstolo de Jesus Cristo, por mandato de Deus, Nosso Salvador, e de Jesus Cristo, nossa esperança» (Carta a Timóteo); «Paulo, Apóstolo de Jesus Cristo, para levar aos escolhidos de Deus a fé e o conhecimento da verdade que Deus prometeu antes do começo dos séculos e que manifestou a seu tempo por meio da pregação que me foi confiada» (Carta a Tito). A nossa viagem com S. Paulo faz-se com a cabeça e o coração, com a vida inteira, aceitando dar os tombos que forem precisos. D. Joaquim Gonçalves, Bispo de Vila Real


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