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O cristão face à Quaresma

D. Teodoro de Faria
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Nota Pastoral de D. Teodoro de Faria

Acolher a criança 1 — «Quem recebe em Meu nome uma criança como esta é a Mim que recebe» (Mat. 18, 5), é a frase do evangelho de S. Mateus que o Papa escolheu para constituir o tema da sua Mensagem para a Quaresma de 2004. Seguem o ensino do Senhor os pais que têm uma família numerosa, os que em vez do sucesso e carreira profissional se preocupam mais em transmitir aos filhos os valores humanos e religiosos que dão sentido à existência. Do lado oposto estão os egoístas que rejeitam ter filhos, os que praticam violência contra as crianças, como abusos sexuais, prostituição, envolvimento no despacho de drogas, trabalho infantil, vítimas alistadas para a guerra, tráfico de órgãos e pessoas. Na tragédia da Sida estão envolvidas milhões de pessoas, algumas das quais contagiadas desde a infância. Que mal fizeram estas crianças para sofrerem tanto? Não há resposta para interrogação tão inquietante. A fé ajuda-nos a penetrar neste abismo de sofrimento. O mistério pascal ilumina a nossa existência mesmo nos seus aspectos mais complexos e dolorosos. Nesta diocese há crianças carenciadas de amor e de atenção, até das próprias famílias. Os pais estão sobrecarregados com o trabalho profissional, algumas crianças não frequentam a escola, outras passam horas presas à televisão ou têm a rua como lugar de diversão, e, pior ainda, algumas são maltratadas dentro da própria casa. Fiel ao Evangelho, a Igreja sempre se ocupou com as crianças e educa-as na fé, recolhe-as em instituições de prevenção, e as feridas por deficiências profundas encontram protecção e amizade nas casas sócio-carita-tivas. Apesar disso muitas crianças encontram-se em situações urgentes às quais nem a Igreja nem os serviços públicos conseguem dar resposta. Alertas não faltam, mas precisam-se de respostas, onde impere o amor e a educação integral, mais do que a procura de protagonismo. Quaresma é tempo para reflectir, como atender e salvar mais e melhor as crianças e adolescentes? Testemunhar o Evangelho da caridade 2 — Todos os anos os nossos cristãos e homens de boa vontade são convidados a testemunharem o Evangelho da caridade, através de pequenas privações voluntárias, a que chamamos «Renúncia da Quaresma», para com o seu produto socorrermos pessoas, projectos e instituições que nos estendem as mãos e se encontram em grave necessidade. Este ano a nossa Renúncia será destinada a crianças, adolescentes e jovens que perderam os familiares vítimas da violência na África do Sul, e que de um momento para outro, ficaram órfãos, sem meios de subsistência, dependentes da ajuda particular ou de organizações eclesiais. O «Forum Contra o Crime», criado para desenvolver iniciativas de paz e combate contra a violência, atende os casos mais dolorosos das vítimas inocentes, principalmente crianças e jovens. A oferta que conseguirmos reunir, fruto da generosidade dos nossos fiéis, terá esta finalidade e responde ao pedido da Mensagem que o Santo Padre propõe para esta Quaresma – dedicar maior cuidado às crianças. Convocai a assembleia 3 — «Tocai a trombeta em Sião, ordenai o jejum, convocai a assembleia», a Igreja, todos os anos, na liturgia da Quarta feira de Cinzas, apresenta este grito de alerta do profeta Joel. Neste dia inicia-se a caminhada para a Páscoa, guiados por Cristo, sob a iluminação do Espírito Santo. Durante quarenta dias a liturgia da missa apresenta um programa de acordo com a mensagem evangélica, traçando o caminho da nova justiça, diverso do espírito do mundo e que se manifesta nas três expressões da piedade tradicional dos judeus: a caridade desinteressada, a oração sincera e o jejum verdadeiro (Mt. 6, 1-6). Se considerarmos as observâncias exteriores, a quaresma, não é muito exigente. A abstinência da carne resume-se à quarta feira de cinzas e à sexta feira santa; o jejum é deixado ao juízo de cada um e ao seu espírito de generosidade; a penitência pode consistir em aceitar o peso de cada dia com paciência e até alegria. O importante é conhecer qual é a vontade de Deus a respeito de cada um de nós. Deus toma a sua Igreja e a nossa vida em Suas mãos para nos renovar e purificar. Cristo, Bom Pastor, procura as suas ovelhas, é Ele quem toma a iniciativa, concedendo-nos o dom da conversão e da alegria pascal. Reconstituir o homem interior 4 — Saborear e meditar a Palavra de Deus é uma ocupação privilegiada da Quares- ma. «Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus» (Mt. 4, 4). Em cada missa, durante a semana, a primeira leitura é sempre do Antigo Testamento. Faz bem meditar na Antiga Aliança, não como simples curiosidade, mas com o desejo de aprofundar para descobrir e conhecer as eternas ansiedades e desejos do coração humano. Diz o Concílio Vaticano II, que nestes livros se encontram «sublimes doutrinas a respeito de Deus, uma Sabedoria salutar a respeito da vida humana, bem como admiráveis tesouros de preces, nos quais, finalmente, está latente o mistério da nossa Salvação» (DV 15). Se a Quaresma é tempo de oração, a escuta e meditação da Palavra de Deus é a parte essencial da oração. No tempo de conversão e penitência é lógico pedir perdão. O sacramento da Reconciliação é a coroa de todos os actos penitenciais. A confissão quaresmal deve ser feita com serenidade, sem pressa, e com espírito de oração. A experiência do amor misericordioso de Deus leva o penitente a rejeitar o pecado e a retribuir o amor de Deus com o seu próprio amor. Um dos aspectos mais lamentáveis do estilo moderno de vida é a degradação da vida interior. Para crescer, o homem precisa de penetrar no mistério do seu próprio ser, de atingir o centro da sua vida, onde ele é totalmente ele próprio. O homem deve sentir necessidade de salvação, ter consciência de que não pode libertar-se por si mesmo. A quaresma não perdeu a sua actualidade, é necessária, para de novo recebermos Cristo como Espírito que dá vida, como caminho que leva à Páscoa e a Deus Pai. Funchal, 29 de Fevereiro de 2004 D. Teodoro, Bispo do Funchal


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