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O Papa que guiou a Igreja para o terceiro milénio

D. Manuel Pelino
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Testemunho do Bispo de Santarém

Morreu o Papa João Paulo II, esgotado pela doença mas corajoso até ao fim. É na altura dolorosa da sua morte que tomamos consciência mais clara do papel importante que desempenhou na vida da Igreja e do mundo. O Papa partiu mas nós conservamo-lo no coração e na memória, guardamos as imagens da sua vida e das suas iniciativas, recordamos as suas mensagens, admiramos mais profundamente o contributo que prestou à nossa civilização. É com veneração e comoção que eu, pessoalmente, recordo a pessoa de João Paulo II. Ao designar-me para o episcopado, inesperadamente, o Papa João Paulo II tocou, mais de perto, a minha vida. Quando o Núncio Apostólico, em Dezembro de 1987, me chamou para me comunicar, com estupefacção minha, que o Papa me escolhera para Bispo, caí das nuvens. Como podia ser? O Núncio deu-me as explicações que julgou oportunas acerca do processo de escolha. Afirmou-me também, sem rodeios, que este chamamento estava na lógica da minha promessa de servir a Igreja onde a Igreja precisava de mim e não onde eu gostava de estar. Experimentei, nessa altura, que o Papa, mesmo lá longe, tinha autoridade sobre mim. Era o orientador supremo da Igreja que eu escolhera servir. Como Bispo tive várias ocasiões de contactar e conhecer o Papa de perto. Na primeira “visita ad limina”, João Paulo II tornou-se para mim uma pessoa próxima, muito humano, simpático, atento às pessoas e às situações. Estas visitas constam de vários encontros de pequenos grupos de bispos com o Papa: Uma vez vamos, bem de madrugada, concelebrar a missa com ele; outra vez somos convidados para a sua mesa; outras temos diálogos pastorais. Após esta primeira visita, tive várias oportunidades de estar pessoalmente com o Papa e, assim, apreciar a riqueza da sua personalidade e aumentar a minha admiração por ele. A preocupação de dar a palavra a todos, mesmo que algum tivesse a tendência de absorver a conversa, as perguntas finas que fazia, as observações oportunas, mostravam uma observação atenta e um apreço grande pelos que o rodeavam. A sua boa disposição e sentido de humor eram irradiantes. A sensibilidade humana, a simplicidade, a profunda espiritualidade, a dedicação radical ao ministério e a capacidade de trabalho, impressionavam. No Sínodo de 1999, tive o privilégio de estar longamente na presença do Papa, perto de um mês, todos os dias, na mesma sala, ali tão próximos, como colaboradores na mesma missão. Os dias eram de trabalho intenso e cansativo. Mas, nos intervalos, o Papa ainda dava audiências e recebia personalidades. Notei, algumas vezes, o olhar atento e pessoal que dirigia a cada um. No final de cada dia, dirigia uma palavra simples de despedida. O curioso era que empregava, improvisadamente, a mesma língua em que tivesse falado o último interveniente. Uma vez, o último interveniente foi um cardeal brasileiro e, assim, tivemos o gosto de recebermos as boas noites e a despedida do dia, na nossa língua portuguesa. Foi um Papa amigo dos homens, crente na humanidade, atento à realidade, sensível aos problemas dos pobres e sofredores e sempre com uma mensagem de esperança, apesar das nuvens ameaçadoras. Um Papa com um coração onde cabia todo o mundo, construtor empenhado da fraternidade universal dos povos, defensor da justiça e da paz, promotor corajoso do diálogo entre todas as religiões. Um Papa com predilecção e confiança nos jovens, que os amava e lhes dizia a verdade. O magistério de João Paulo II foi de uma riqueza impressionante. Os livros, documentos e cartas que nos ofereceu são em grande abundância e de qualidade admirável. Lembro apenas os últimos documentos sobre a Eucaristia que precisei de consultar agora na Semana Santa. O mais recente foi a carta que escreveu aos sacerdotes na Quinta Feira Santa deste ano de 2005, assinada na Policlínica Gemelli, sobre a espiritualidade do sacerdócio à luz da Eucaristia. No dia 7 de Outubro do ano passado, 2004, havia publicado a Carta Apostólica para o ano da Eucaristia “Permanece connosco Senhor” (“Mane Nobiscum Domine”). Pouco antes, na Quinta Feira Santa de 2003, havia apresentado a Encíclica “A Igreja da Eucaristia” (Ecclesia de Eucharistia”). Ainda em 2003, em 4 de Dezembro, escrevera uma carta sobre os 40 anos da renovação litúrgica do Concílio Vaticano II (“Spiritus et Sponsa”). No Pentecostes de 1998, havia oferecido à Igreja um rico documento sobre “O Dia do Senhor” (“Dies Domini”). Todas estas publicações revelam, a quem as consultar, um conteúdo profundo apresentado de uma forma muito bela. Em todos estes, aliás, se refere a necessidade de realçar, na celebração da Eucaristia, a dimensão da beleza. Mas, neste mesmo período de tempo, escreveu muitos outros livros sobre temas muito variados. Uma preocupação subjacente em muitos dos seus escritos e tomadas de posição, foi a de fortalecer a identidade cristã num mundo em mudança, incerto, vazio, inseguro e confuso. Identidade da Igreja que vive da Eucaristia como organismo eclesial que encontra a sua referência e a sua força no Corpo Eucarístico do Senhor. Por isso, a Igreja é chamada a viver em união fraterna e a tornar-se no mundo um sinal e um instrumento de unidade entre todos os homens. Identidade dos cristãos alimentada na contemplação do rosto do seu Senhor. Identidade dos pastores da Igreja chamados a servir o Povo de Deus na fidelidade e à imagem de Cristo Bom Pastor. Esta preocupação pela identidade dá coerência e unidade ao seu ministério que não se pode enquadrar nos habituais esquemas reduzidos de conservador/progressista. A preocupação por consolidar a identidade cristã explica também a sua itinerância pelo mundo. A missão é a razão de ser da Igreja, enviada a levar a todos os homens o Evangelho da paz e a construir o Reino da verdade, da justiça e do amor. Uma missão que abraçou com uma entrega total, sem desfalecimento nem medo. “ Não tenhais medo” recomendava frequentemente a partir da sua própria atitude interior. Um Papa aberto e confiante no futuro. Desde o início do seu pontificado olhou e preparou a Igreja para o Novo Milénio. Foi o momento alto do seu pontificado enriquecido pela profundidade das mensagens que escreveu para esse evento, pela coragem de muitas atitudes inauditas que assumiu na altura, pela grandeza e beleza do conjunto de iniciativas, pela adesão total de todo o mundo. Ele partiu mas deixou o rumo traçado para continuarmos a missão. Santarém, 3 de Abril de 2005. Manuel Pelino Domingues, Bispo de Santarém


João Paulo II - 25 Anos