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Obreiros da justiça e da paz!

D. António Marcelino
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Homilia da bênção dos finalistas em Aveiro

“ A cidade não precisa da luz do sol nem da lua, porque a glória de Deus a ilumina e a sua lâmpada é o Cordeiro…” (II leitura do Apocalipse) “ Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz, Não vo-la dou como a dá o mundo. Não se perturbe nem se intimide o vosso coração. Vou partir, mas voltarei para junto de vós”. (Evn. de João) 1. Quisestes, caríssimos finalistas, livremente e sem que o seja por rotina, que o vosso final de curso fosse assinalado com um acto de louvor e de gratidão a Deus. Ele vos deu a graça de terdes chegado a uma justificada hora de festa, que coroa esforços diários, concretiza longos e inúmeros sonhos e reconhece, por fim, os méritos de uma porfiada luta, de que saís vencedores. Este acto de louvor e gratidão centra-se no acontecimento mais alto e mais significativo da vida dos cristãos, a celebração da Eucaristia. Ela constituiu, também, para muitos de vós, ao longo dos anos, um forte estímulo e um apoio decisivo a muitos dos vossos projectos e desejos, deu sentido à vossa vida, iluminada e fortalecida pela fé e foi um força diária para prosseguir. Estou convosco, partilho da vossa alegria, por poder participar da vossa gratidão a Deus. Desejo, a todos vós, um futuro que vos compense do trabalho realizado e permita novas decisões e opções, que, só agora, vós podereis, em verdade, concretizar. 2. A Universidade de Aveiro festeja os seus 30 anos. São tão conhecidos, como reconhecidos, dentro e fora do país, os seus méritos de Escola de qualidade e, em muitos casos, de justificada excelência. Escola de que se gosta e que se deixa saudades na hora da despedida. Um testemunho que vem de vós que aqui vos preparastes para a vida profissional e de muitos dos que vos precederam, em anos atrás. Num ambiente acolhedor desta Universidade, proporcionado pela suas estruturas directivas, a que preside a sua Magnífica Reitora, soube-se, mais uma vez, respeitar a vossa legítima opção de fé, manifestada publicamente. Um respeito que se vem afirmando, ano a ano, no acolhimento às opções legítimas, não apenas individuais, pois que religião não é intimismo e privacidade, mas mesmo quando traduzidas em expressão comunitária. Isto só dignifica o conceito activo e pluralista da democracia, bem entendida por uma Universidade, aberta às pessoas, que acolhe aqui, hoje, um acontecimento com marcada dimensão religiosa, tanto dos seus finalistas, como dos finalistas de outras Escolas Superiores, sediadas na cidade e na região de Aveiro. Um gesto que me apraz sublinhar no seu alto significado, como modelo de uma instituição que respeita as pessoas e os grupos, quando eles sabem exprimir, de modo igualmente respeitoso e normal, os seus valores e as suas legítimas opções. 3. A vossa vida, como a desta Universidade em festa comemorativa, está marcada por certezas já vividas e pela esperança que fará, dos seus e vossos projectos e caminhos futuros, novas certezas a enriquecer o património humano e cultural, que estará sempre ao vosso alcance enriquecer mais, usufruir e transmitir a outros, com os quais sois chamados a partilhar a vida, a experiência, o saber. A comunidade nacional tem, agora, direito a esperar das instituições com uma vocação pública de serviço à nação, e das pessoas que beneficiam hoje de possibilidades, de que ontem tantos outros não puderam beneficiar, um testemunho de compromisso em projectos novos, de renovação e de crescimento de uma sociedade mais livre, mais justa e mais fraterna. Todo o saber autêntico é, de facto, chamado a tornar mais rico um património comum, que o será se for mais benéfico para todos. Pessoas e instituições são chamadas hoje, de modo a não haver demoras no vencer da rotina, a trabalhar pela sua mais visível identidade; chamadas a dizer, de modo inteligível, a razão do seu ser e do seu agir, de modo a que se possam constituir propostas renovadoras para tantos que ainda não encontraram caminho que os empenhe e as justifique. Não há melhor resposta à indiferença, qualquer que ela seja, que aprofundar, com razões válidas, a experiência própria de caminhos andados e de lutas vencidas, bem como fortalecer, de igual modo, a capacidade de dar um testemunho, que se possa tornar uma proposta séria e contagiante. 5. Como a festa, nesta tónica religiosa e cristã, é sobretudo vossa, caríssimos finalistas, permiti que vos deixe o meu contributo para a valorização da vossa identidade cristã, também ela uma garantia da vossa realização pessoal e do vosso compromisso qualificado à sociedade. A grande novidade de nós cristãos é que a nossa história nos vem de Alguém. Nós a construímos com Alguém que, pela fé, nossa e da comunidade que nos integra, entrou na nossa vida e a vai mudando. Esse Alguém é Jesus Cristo: Mestre e Companheiro, Redentor e Senhor, Caminho, Verdade e Vida, Luz que não deixa que as trevas obscureçam os nossos projectos e caminhos, Irmão universal que a todos se oferece, sem reserva, Sedutor fascinante para quem deseja ir sempre mais além. Jesus Cristo, Alguém que se aprende no dia a dia e faz dessa aprendizagem, ocasião de uma transformação interior que, depois, se projecta no que se é, no que se diz, no que se faz, no que se sonha. Todo o cristão tem em Jesus Cristo, não apenas a razão do seu nome, mas a sua referência diária, a sua instância critica permanente e a sua força. A vida, porém, vai-nos mostrando que também Jesus Cristo se pode esfumar no horizonte de um crente, quando este não alimenta, esclarece e revigora a sua fé, quando não se dispõe a aprender a viver num mundo que a torna mais difícil, ao mesmo tempo que mais necessária. A tentação de “fingir não crer” pode atingir e, por vezes, atinge mesmo os próprios cristãos, sobretudo quando o rumor circundante aumenta de ruído e não tem a tónica do Evangelho da libertação e da paz, ou quando os problemas inevitáveis que vão surgindo, ameaçam submergir quanto de transcendente e de grito de vida existe em cada um de nós. Na prática da solidariedade se redescobre o projecto de Cristo, porque se redescobre também a nossa indispensável ligação aos outros, eles que nos completam, nos interpelam, nos julgam e, a favor de quais, vale sempre a pena fazer da vida uma dádiva, alegre e generosa. O individualismo egoísta e o querer viver apenas na satisfação do imediato e do transitório, empobrecem as pessoas até à destruição total, até à cedência ao vazio sem sentido, até à perda de capacidades, que não se resignam a um investimento banal, nem a que se despreze a história que dignifica, em favor da historieta que malbarata a vida.. 6. A gente nova, caríssimos jovens, sendo por vezes mais vulnerável, é certo, tem, no entanto, sensibilidade que muitos dos mais velhos já não têm, para não opor obstáculos à verdade e perceber o mundo em que vivemos, com seus méritos e deméritos, com seus desafios e insinuações, com seus valores e banalidades. Esta sensibilidade cultiva-se, em cada dia, pelo diálogo confiante com Deus e com os outros, pela procura da interioridade espiritual, pela escuta serena da Palavra de Deus, pela reflexão cuidada sobre a realidade humana e social, pela abertura ao pluralismo, pelo empenhamento generoso em projectos dignos e dignificantes, pelo compromisso assumido em prol da dignificação das pessoas e na promoção do bem comum. A identidade cristã não se traduz apenas em atitudes de prática do culto religioso, mas atinge todo o agir humano na sua dimensão pessoal e social, no modo de sentir, de pensar, de viver e de conviver, que leva o crente, como discípulo de Jesus Cristo, a ser uma pessoa harmónica realizada e socialmente comprometida. 7. Abri a minha reflexão deste dia, citando a Palavra de Deus que acabava de ser proclamada e corresponde à liturgia deste Domingo. Deixai que vos diga qual a razão da escolha e o sentido que vi nestas palavras: “A cidade não precisa da luz do sol nem da lua, porque a glória de Deus a ilumina e a sua lâmpada é o Cordeiro.” Esta sociedade de que fazemos parte, cada vez mais de conhecimentos, mas também mais efémera, não precisa, no seu rumo, da luz passageira que se apaga de cansada logo que se acende. A sua luz verdadeira será sempre a dimensão de serviço aos outros e a prática efectiva da solidariedade fraterna, porque só pela dignificação das pessoas e pela satisfação dos seus direitos fundamentais, se pode traduzir o louvor de Deus. Ele quer que “o homem viva”, caminhe para a plenitude e a alcance. Por isso, fez do homem o Seu caminho, o Seu eterno projecto. Por isso, o Cordeiro, Jesus Cristo, o Enviado do Pai, será, por meio dos seus discípulos e pela acção solidária destes com todos os homens de boa vontade e de coração sincero, a lâmpada que ilumina uma sociedade, que esteja preocupada com o bem e a verdade e seja construtora da liberdade e da justiça. “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não vo-la dou como o mundo a dá…” A grande aspiração da humanidade é hoje e será sempre a paz. Não uma paz, fruto apenas do silêncio das armas de morte ou conseguida através de estratégias ou de pactos de não agressão, que mais não fazem que manter na humanidade um ambiente de guerra fria, de medo e de desconfiança. A paz, pela qual clama o coração de cada um de nós e a comunidade humana, é a harmonia construída na justiça, temperada no respeito mútuo, traduzida em amor gratuito, enraizada num coração pacificado e pacificador. Essa paz identifica-se com os tempos messiânicos, novos e renovadores, é dom que Deus outorga ao homem, para que ele a construa, dentro de si e à sua volta, com todos os outros, num processo que se vai alargando sempre mais, porque a paz que vem de Deus, é sempre possível. Obreiros da justiça e da paz! Isso vos auguro, a todos vós, que agora partis, equipados para novas aventuras que a vida vos vai proporcionar. Sentireis na vossa carne que, porque muitos se omitem no seu dever de construírem uma sociedade justa e fraterna, uma sociedade de todos e para todos, parece agora só haver lugar para alguns e mais parece uma sociedade de muitos excluídos, que de cidadãos iguais, em direitos e deveres. À vossa frente, uma tarefa urgente e inadiável, a que não vos podeis negar. Sirva-vos de estímulo à vossa fé, a Palavra do Evangelho: “ Não se intimide, nem se perturbe o vosso coração. Voltarei para junto de vós e estarei sempre convosco até ao fim”.


Pastoral Universitária