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Parecer da CNJP sobre o projecto da ACEGE do Código de Ética dos Empresários e Gestores

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É de saudar a iniciativa da ACEGE de elaborar um código de conduta ética para empresários e gestores. Parece-nos, igualmente, louvável que a ACEGE esteja empenhada em promover a adesão voluntária de empresários e gestores a um tal código de conduta ética de inspiração cristã. Com efeito, neste tipo de iniciativas, é fundamental que as pessoas envolvidas no seu cumprimento estejam solidamente convictas dos fundamentos e da bondade das normas que afirmam querer cumprir. Compreende-se, assim, que no projecto de Código de conduta ética apresentado pela ACEGE se procure dar relevo à explicitação de princípios-chave da doutrina social da Igreja católica pertinentes ao tema. Sobre os fundamentos Nesta perspectiva, é de esperar que um código de conduta ética de empresários e gestores que procurem inspirar a sua acção na doutrina social da igreja deva distinguir-se de um código de ética de empresários e gestores que não tenham esse objectivo. Designadamente, se o horizonte é o da doutrina social da Igreja, para além do objectivo de assegurar um honesto e regular funcionamento do mercado, o que, obviamente, é relevante, há que ter presente, também, na óptica do bem comum, as imperfeições do mercado, com o que isso implica de obrigações jurídicas e morais. Neste contexto, consideramos positivo que o projecto assinale, de forma clara, os seguintes princípios e normas: desde logo, o princípio geral (enunciado no ponto A do preâmbulo) do primado da pessoa humana sobre todas as estruturas económicas; a noção (constante do ponto II,2) de que a empresa só ganha sentido nos fins sociais que prossegue, designadamente na produção da riqueza, na criação de oportunidades de trabalho, na realização pessoal das pessoas que nela trabalham e no desenvolvimento social no seu todo (noção que corresponde à de função social da propriedade); a enunciação clara (no ponto II,3) de que a ética empresarial se não distingue da ética pessoal (o que significa que, também para ela, valem os critérios cristãos); a regra da subordinação (constante do ponto II,5) do objectivo da rentabilidade da empresa e da lógica do lucro à dignidade humana e aos direitos fundamentais da pessoa; a obrigação (decorrente do ponto III,2.1) de opção, nas decisões de investimento, por soluções que salvaguardem a justiça social; a obrigação (constante do ponto III,2.4) de ponderação dos impactos sociais e humanos nas deslocalizações, não absolutizando como critério de decisão a optimização dos investimentos e, ainda, defesa de um relacionamento com a sociedade baseado na solidariedade e na responsabilidade (ponto III;5). Sobre a necessidade de maior concretização Nesta linha de pensamento, afigura-se-nos, porém, que o código poderia ser mais completo e concreto em relação a alguns aspectos. Salientamos os seguintes, pela sua relevância na actualidade. Em nosso entender, seria de acentuar a obrigação de só recorrer ao despedimento quando tal se imponha por razões de sobrevivência da empresa e salvaguarda de outros postos de trabalho e nunca, obviamente, por razões de mera maximização de lucros. Por outro lado, ficaria bem que, ao defender a realização pessoal dos trabalhadores e trabalhadoras (CF ponto III,1) houvesse algum compromisso com a atenção a dar à duração e aos horários de trabalho, por forma a garantir a melhor conciliação entre vida profissional e vida familiar e pessoal dos colaboradores. A preocupação com a prevenção de acidentes e com a formação do pessoal ao serviço da empresa bem como a prática de salários justos e da não discriminação contra as mulheres ou contra os trabalhadores estrangeiros deveriam, igualmente, merecer adequada explicitação no código. No que se refere às obrigações fiscais, pensamos que, mais do que uma questão de “lealdade para com o estado” deveriam tais obrigações ser consideradas como parte integrante da responsabilidade social da empresa e decorrente da função social da propriedade. Esta é uma questão a que importa dar o maior relevo, pois sabemos como, entre nós, são tão frequentemente ignoradas estas obrigações por parte das empresas, sobretudo por falta de consciência social e de falta de consciência da ligação entre estas obrigações e a responsabilidade social da empresa. Ora se essa consciência não existe, e se a questão se coloca apenas no plano do relacionamento com o estado, será fácil (como tantas vezes sucede) encontrar no incumprimento pelo estado dos seus deveres para com a empresa uma pretensa justificação para o incumprimento por parte da empresa dos seus deveres para com o estado. No que se refere às potencialidades da economia social de mercado, conviria acentuar a sua dimensão social, por contraposição à economia de mercado liberal. No actual projecto o que se verifica é que, no ponto III,2, relativo à defesa da economia social do mercado, defende-se o regular funcionamento do mercado, mas quase se omite a dimensão social. Se é certo que se afirme o direito de iniciativa económica e o direito de propriedade, não deve prescindir-se de salientar a necessidade de mecanismos que assegurem a inclusão social, nomeadamente das pessoas que se vêem excluídas do mercado de trabalho e bem assim que se prossigam medidas de correcção das desigualdades na repartição do rendimento e da riqueza decorrentes do mero funcionamento do mercado. Comentários de ordem geral Como notas mais gerais, destacamos o seguinte. Surpreende que, num código de conduta ética, não exista qualquer preocupação com uma linguagem inclusiva em relação ao género. Falar de Homem, mesmo que com letra capital, para designar o ser humano, mulher e homem, não é defensável. O conceito de empresa, que parece subjacente a todo o texto, peca por não referir, explicitamente, duas vertentes importantes: a empresa como comunidade humana e a empresa como actor social, levando a supor que apenas empresários e gestores a constituem. Seria desejável ver alguma referência ao reconhecimento de que os empresários e gestores dispõem de poder na sua relação aos trabalhadores ao seu serviço, pelo que se torna ainda mais imperativo o enquadramento ético das suas atitudes e comportamentos. Por outro lado, cabe notar que empresários e gestores não são sujeitos passivos da organização da sociedade e por isso devem empenhar-se nos processos negociais de concertação social, de maneira a transpor para essas instâncias os princípios e normas de conduta ética que defendem. O mesmo deverá suceder quando se trate da elaboração de legislação em matéria laboral ou ambiental. Por exemplo: quando se discute a flexibilização do trabalho, os empresários e gestores cristãos, que defendem que “o ser humano é o fundamento, o sujeito e o fim de todas as instituições em que se expressa a vida social”, deverão intervir para que tal princípio não seja ofendido pelas leis gerais. Quando se afirma – e bem – que cada ser humano tem uma missão a desempenhar e que são necessárias condições para a potencializar, deverá explicitar-se a responsabilidade de empresários e gestores em garantir condições básicas para que tal se verifique nas situações concretas dos trabalhadores e trabalhadoras das suas empresas. Reduzir o ser humano ao trabalho não é defensável à luz da DSI. Na problemática em causa é importante reconhecer o direito à vida pessoal e familiar de cada um/a e como este deve ser conciliado com o trabalho na produção. Ainda no plano dos conceitos, e no que se refere à empresa, será que pode partir-se do pressuposto de que “a empresa como comunidade humana é fundada em interesses não coincidentes”? De que conceito de empresa se fala? Empresa só como a propriedade de um capital? Uma preocupação séria com a transparência e o cumprimento das normas O código de conduta ética agora proposta só poderá ganhar o devido alcance e eficácia se for acompanhado de algum instrumento que permita comprovar o cumprimento das normas que propões. Não basta, com efeito, aderir ao código. Há que provar, através de informação regular acerca de um conjunto de indicadores pré-estabelecidos, se as normas aceites estão efectivamente a ser cumpridas. Por outro lado, é sabido como este tipo de códigos vem ganhando alguma popularidade nos meios empresariais de vários países e como têm servido de publicidade a empresas e produtos face a consumidores cada vez mais conscientes da sua responsabilidade social e predispostos a ter voz no mercado. Há, pois, que salvaguardar requisitos básicos de verdade e transparência. Esta é mais uma razão que nos leva a sugerir à ACEGE que tenha na devida conta a necessidade de rodear das indispensáveis cautelas a certificação da adesão ao seu código de conduta ética, bem como preveja, com clareza, a monitorização do cumprimento efectivo das normas. Reconhecimento de outros códigos de conduta Por último, ocorre referir que, em nosso entender, o código de conduta ética da ACEGE não deve ficar aquém dos princípios e normas de conduta já reconhecidos e aceites no âmbito de organismos internacionais, os quais deveria reconhecer e re-afirmar. Queremos referir-nos, em particular, à Declaração tripartida de princípios relativos às empresas multinacionais e política social, de novembro de 1977, revisto em novembro de 2000. Aí se inclui um conjunto de boas práticas, designadamente no que respeita ao emprego, formação, condições de trabalho, relações laborais. Embora traduzindo acordo entre governos, organizações de empregadores, organizações de trabalhadores e empresas multinacionais, tais normas só passarão à prática se forem também assumidas no plano da consciência ética dos empresários e gestores. A ACEGE, através do seu código de conduta ética, poderia contribuir para que os empresários portugueses dessem maior adesão a tais requisitos. Atenção análoga deveriam merecer os princípios orientadores que vêm sendo objecto de debate e construção de consenso no seio da OCDE. Refere-se, a título de exemplo, as linhas e orientação para as empresas multinacionais, revistas em 2000. Apesar de serem dirigidas às ETNs, contêm conceitos, princípios e orientações que são válidos para a generalidade das empresas. Espera-se de um código de conduta ética, mormente quando elaborado sob a responsabilidade de uma organização cristã, que não fique aquém daquilo que já é consensual no plano da concertação, mas assuma explicitamente e valorize os conteúdos que respeitem valores essenciais. Setembro 2004 A Comissão Nacional Justiça e Paz


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