Dia Mundial da Paz
Sé do Porto
2007.01.01
1 – Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus. Dia Mundial da Paz. Primeiro de um novo ano que, como sempre, iniciamos envolvidos em votos de paz que ouvimos dos mais diversos quadrantes e nos formulamos. É o mais belo nome de Deus[1], a paz, a meta da humanidade, o grande desejo do coração humano, o maior.
Colocamos Maria no centro destas ocorrências.. Mãe de Deus, Mulher de paz. Rainha e a Mãe da Paz, ela é, também e por isso, sua grande promotora. Pedimos-lhe que nos ensine e ajude a vivê-la e a construi-la.
Foi, de facto, aceitando-se e assumindo-se na verdade de si mesma, (a verdade é geradora de paz) de criatura diante do seu Criador e Senhor, colocando-se nas suas mãos, confiante e segura (...faça-se), que Maria se constituiu em espaço aberto e propício à incarnação do Filho de Deus, daquele que, “Príncipe da Paz” (Is 9,5), é “a nossa Paz” (Ef 2,14) Paz que é a súmula de todos os bens – shalom – que Deus prometera ao seu povo na demanda da Terra Prometida, terra de liberdade e bem estar, terra onde corre leite e mel, terra da paz (Nm 6,22- 27)
2 – Mas Maria é ainda, e como dissemos, promotora da concórdia entre os homens. Ela indica o caminho para uma vida harmónica perfeitamente integrada na teia das diversificadas relações humanas.
Primeiro passo desse caminho é entregar-se a Deus. Confiar-lhe a vida. As necessidades, os problemas e as dificuldades. Os sonhos e os projectos. Entregar-se à sua misericórdia e ao seu perdão.
Ela mesma, colocando-se a nosso lado, sentindo-nos, leva tudo isto a Seu Divino Filho. Entrega-o à eficácia do seu amor. “Eles não têm vinho...” (Jo 2,3)
O segundo passo, simultâneo com o primeiro, é ouvir e conformar a vida com a Palavra. Responder, vivendo, às exigências e interpelações dessa Palavra que se fez carne, Jesus Cristo. “Fazei o que Ele vos disser...” (Jo 2,5)
É este o caminho da paz que ela nos apresenta e quer percorrer connosco. Paz que é portanto , e ao mesmo tempo, dom de Deus que nos ouve, e conquista do homem fiel a Jesus, que é a sua verdade.
3 – “A Pessoa Humana, Coração da Paz” (PHCP) é o tema que o Santo Padre escolheu para a sua mensagem neste primeiro dia de 2007, inspirado, como ele diz, nas crianças “que, na sua inocência enriquecem a humanidade de bondade e beleza e com o seu sofrimento a todos nos animam a sermos obreiros da justiça e da paz” (PHCP nº1)
“Coração da paz” a pessoa humana há-de entender-se, pois, como instância ou referência de dinamismos de sã convivência, de fraternidade, de diálogo, de paz. Instância ou referência capaz de transformar e purificar as relações entre os homens, tantas vezes viciadas.
Coração da paz, também ela, a pessoa humana, necessitada de paz para ser e se desenvolver, para crescer na resposta à verdade de si mesma, na resposta à Palavra Criadora e Redentora.
4 – O homem não foi criado para viver sozinho. “Não é bom que o homem esteja só” (Gn 2,18) Porque só, não é. Não se encontra. Não toma consciência de si mesmo. Criado à semelhança de Deus, o homem, a pessoa humana é com. É na pluralidade. É na pluralidade que se constrói, que se desenvolve, que actualiza as suas potencialidades. Não se dilui, a pessoa, antes é com os outros que conquista a sua singularidade, a sua identidade. Que conquista, diria mesmo, a sua autonomia. E vive a sua dignidade.
O ser do homem é um ser de-com-para. Vive com os outros dos outros e para os outros. Em termos mais concretos diríamos que o homem vive dando e recebendo, ensinando e aprendendo, perdoando e aceitando o perdão, servindo e aceitando ser servido, mandando e obedecendo. De maneira abrangente diríamos, vive no, do e para o Amor[2]. O amor ao outro e o amor do outro. Em Deus.[3] Respeitar-se nesta verdade é entrar a percorrer os caminhos da paz.
5 – Chamado a vivê-lo, na natural dependência do seu Criador, o homem não foi capaz. Quis ser igual Àquele de quem era imagem e semelhança. Quis ser igual a Deus – um deus, falso, de resto, um ídolo – porque também Deus, o verdadeiro, é para (o Pai) de (o Filho) e com (o Espírito Santo), relação pura, na insondabilidade do seu Mistério.
Falseou a ideia de Deus, adulterou-se ou adulterou a sua verdade de criatura, perturbou a ordem cósmica. Também a criação ficou à espera da sua libertação (cf Rm 8,22). A terra produzirá, mas com suor e dor. Perturbou a ordem entre os humanos. A solidariedade conjugal feriu-se – “foi ela”. A bom entendimento entre os irmãos e as classes (lavradores e pastores) – Abel e Caim – deu lugar à luta e à violência. O próprio homem desequilibrou-se interiormente. Se antes não havia problema, depois teve de se cobrir (cf Gn 3). Foi-se a ordem. A tranquilidade. A paz.
6 – Obra de um Deus que é paz, e tem a paz como característica do seu agir (cf PHCP n.º 3), a criação foi pois profundamente perturbada na sua harmonia. O homem pode perturbar e perturbou, e perturba, muitas vezes o projecto do criador, mas não o anula.
E Deus não o abandonou ao seu devaneio. Prometeu a paz. E ela veio. E ela nasceu. Jesus de Nazaré. N’Ele Deus dá-se todo até à morte, para conquistar o homem que Lhe fugiu, para o seu amor e para o amor dos irmãos (cf Jo 12,32). Redimiu o homem, o tempo e o universo. Restaurou o homem reconduzindo-o a verdade de si mesmo. À possibilidade de si. À possibilidade da paz. Deu ao tempo dimensão eterna. E fez da história, da vida do homem nas suas relações, teatro e caminho para o encontro com Ele.
Ficou aberto o caminho da paz.
7 – Compete ao homem percorrê-lo. Aí está o dom. Ao homem o conquistá-lo. E o homem, se podemos dizer assim, está apetrechado para isso.
Tem inscrita no mais profundo de si, “uma gramática” transcendente de paz, “isto é, um conjunto de regras de acção individual e de recíproco relacionamento entre pessoas de acordo com a justiça e a solidariedade” (PHCP n.º 3). Como recordava já João Paulo II, nós não podemos esquecer ou “perder a convicção que os dinamismos constitutivos do homem, o reconhecimento da sua verdadeira natureza, levam o homem ao encontro, ao respeito mútuo, à fraternidade com os outros, à paz” .[4]
8 – A partir daqui, na fidelidade a si mesmo, está o homem preparado para uma “ecologia de paz” que resultará, como diz Sua Santidade, da harmonia e correlação entre uma “ecologia natural” e uma “ecologia humana, social” (PHCP n.º8).
De facto, ainda segundo o pensamento de Bento XVI, se o mundo foi doado ao homem para que ele o domine e o coloque ao serviço de si mesmo de acordo com o projecto do criador, também o homem é doação de Deus ao mesmo homem. Também, por isso, merece e exige o cuidado do homem. Respeitá-lo na sua vida, criar-lhe condições de desenvolvimento, abrir-lhe caminhos de realização equilibrada nos diversos âmbitos, nomeadamente, da educação, da saúde e do trabalho, é pois tarefa, obrigação e dever do homem. E seu direito.
9 – Mas nem aqui o homem está entregue a si mesmo. Ele é fraco[5]. É débil. É capaz de se desviar dos caminhos que lhe estão inscritos no coração. Deus, vem em sua ajuda. Enviou-lhe o Seu Espírito, Espírito que Jesus lhe mereceu. Espírito que é luz. Que é inteligência. Que é força. Que é Amor derramado nos nossos corações (cf Rm 5.5). Que é fonte de paz e de liberdade (cf Rm 8,15; Gl 4,6).
10 – Quer dizer, o homem é capaz de paz. A paz é possível. E temos muitos sinais, neste nosso mundo e nesta nossa história.
11 – Quantos missionários e missionárias vão por esse mundo fora, até ao dom total de si mesmos, no serviço daqueles a quem o Senhor os chama. Quantos homens e mulheres, adultos e jovens, deixam os seu lares as suas famílias para irem por aí fora pôr as suas capacidades e habilitações ao serviço dos mais desprotegidos. Quantos pais e mães se entregam até ao fim pela vida de seus filhos, desde a sua geração. Não é isto levar a sério o ser e viver com, o ser e viver para? Não há tanta solidariedade entre povos e nações? Não há tantas tentativas de diálogo?
Não há tanto amor nas nossas famílias. Em tantas casas onde crianças e idosos se recolhem ao cuidado de voluntários e voluntárias que por eles dão o seu tempo, o seu saber e o seu carinho? Não é isto levar a sério o ser e viver de, o ser e viver com, o ser e viver para? Não é isto corresponder à verdade da pessoa humana, coração da paz. E mais...e mais...
Há tanto amor! É a grande experiência de paz, o amor. Que nos torna ávidos dela, que nos faz seus promotores.
12 – Mas há também sombras. O homem é pobre. É pecador. Referindo de modo particular os direitos à vida e à liberdade religiosa, tantas vezes desrespeitados e esquecidos, o Santo Padre lembra as “vítimas de conflitos armados, do terrorismo, e das mais diversas formas de violência, das mortes silenciosas provocadas pela fome, pelo aborto, pelas investigações sobre os embriões e pela eutanásia. Como não ver nisto tudo um atentado à paz? – Interroga-se Bento XVI –. O aborto e as pesquisas sobre embriões, continua, constituem a negação directa da atitude de acolhimento do outro que é indispensável para se estabelecerem relações de paz estáveis” (PHCP n.º 5) Também aí o homem se nega a ser de com e para. Se nega na sua verdade, para ser só. É o desrespeito por si mesmo. O negar-se. É a violência.
13 – Depois vamos assistindo neste nosso mundo, a uma tentativa mais ou menos generalizada de esconder Cristo. De o retirar da visibilidade dos homens. Será que Ele mete medo a alguém? Será que há homens que têm medo dele? Desse homem que passou pela terra a fazer o bem? Que nasceu na categoria dos excluídos – não havia lugar para ele (Lc 2,7) – e morreu naquela cruz, sem oferecer qualquer espécie de resistência!? Nessa cruz que querem esconder.
Não é nova a tentativa. Mas, como então, não será possível, nem agora. Acreditamos. Acreditamos mas sofremos com isto. E sofremos por e com aqueles que o pretendem. Quiseram calá-lo. Reduzi-lo ao silêncio. Teceram-lhe toda a espécie de ratoeiras. Resistiu. Mataram-no. Era a solução. Enterrou-se. Acabou. Não incomoda mais.
Foi. Mas ele ressuscitou. Está vivo e para sempre. Está entre nós como prometeu, de muitas e variadas maneiras. E continua a incomodar, é claro. Porque Ele é a voz da fidelidade inteira à verdade de si mesmo, à missão que assumiu na sociedade do tempo. Porque Ele é a voz da verdade. Porque Ele é a voz do amor. Porque Ele é a voz da liberdade. E perturba, naturalmente. Porque nos acusa a nós mesmos. Dói mas é para curar. É para salvar. É porque nos quer bem. Por amor. Porque nos quer todos na paz para que fomos criados. À volta do Pai comum. “Ele é a nossa paz”,
Não temos que ter medo de Jesus.
14 – É este o nosso mundo. É neste mundo que vivemos. É aqui que havemos de ser construtores da Paz. Bem-aventurados os pacíficos. Na resposta a este compromisso, a esta tarefa e missão, que é de todos, o homem, o homem de paz, sabe e aprende de Cristo que não deve calar os seus atropelos e desvios, que deve chamar-lhes pelo nome, denunciá-los, lutar pela sua remoção. Mas sabe, e também de seu Mestre, que não é com violências ou sentimentos de vingança que o consegue. Antes com mansidão e humildade, à imagem do seu Jesus (cf Mt 11,29), com sentimentos de misericórdia.
De facto não é com violência, seja de que natureza for, que se combate a violência. É em paz é com gestos de paz, que havemos de construir a paz.
15 – Que a todos vós o Senhor Jesus vos conceda um Ano Novo feliz e santo, na sua Paz.
16 – Termino com a oração de Sua Santidade “Seja Maria, Mãe de Deus, a mostrar-nos no seu Filho o caminho da paz, e ilumine os nossos olhos para que saibamos reconhecer o seu Rosto, no rosto de cada pessoa humana, coração da paz” (PHCP n.º 17)
Janeiro, 01.2007.
+ António Taipa
Bispo Auxiliar do Potro
Bibliografia
IGREJA CATÓLICA. Papa, 2005-...(Bento XVI) – A Pessoa Humana Coração da Paz (Mensagem para o Dia Mundial da Paz, 22007)
IGREJA CATÓLICA. Papa,1958-1963 (João XXIII) – Pacem in terris (Encíclica 11.4.1963)
IGREJA CATÓLICA. Papa, 1978-2005 (João Paulo II) – A verdade, força da paz (Mensagem para o dia Mundial da Paz, 1980)
IGREJA CATÓLICA. Papa, 1978-2005 (João Paulo II) – A Fé e a Razão (Encíclica 14.09.1998)
IGREJA CATÓLICA. Papa, 1978-2005 (João Paulo II ) – O Esplendor da Verdade (Encíclica, 6.8.1993)
RATZINGER, Joseph, Deus e o Mundo, a Fé cristã explicada por Bento XVI. Entrevista com Peter Seewold, Coimbra, Tenacitas , 2006
RATZINGER, Joseph, Fé Verdade Tolerância, O Cristianismo e as grandes religiões do mundo, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2006
IGREJA CATÓLICA, Concilio Vaticano II. 1962-1965, Const. Pas, Gaudium et Spes
[1] IGREJA CATÓLICA. Papa, 2005-.. (Bento XVI), Homilia I Vésperas, 1º Dom. do Advento. 2006
[2] IGREJA CATÓLICA. Papa, 1978-2005 (João Paulo II) – Fé e Razão (Encíclica 14.09.1998) n.º 32
[3] RATZINGER, Joseph, Fé Verdade Tolerância, O cristianismo e as grandes religiões do mundo, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2006, p. 2009 ss
[4] IGREJA CATÓLICA, Papa. 1958-2005 (João Paulo II), A Verdade força da Paz, (Mensagem para o Dia Mundial da Paz 1980 ) n.º4
[5] IGREJA CATÓLICA, Concílio Vaticano II, 1962-1965 – Const. Past. Gaudium et Spes, n.º 78