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Peregrinação cristã - sinal dos tempos que a nova evangelização não pode ignorar

D. Teodoro de Faria
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D. Teodoro de Faria, Bispo do Funchal

O peregrino é movido por convicções individuais ou causas sociais que tornam a peregrinação um fenómeno difícil de definir. A alma humana sente necessidade de acreditar em qualquer coisa que transcende a precariedade da vida material de cada dia, necessita de ser protegida por um ser superior, espera um milagre de Deus através da intercessão de um santo. 1. Em todos os tempos os homens peregrinaram até lugares considerados santos e onde sentiam mais fortemente a presença de uma divindade ou do sobrenatural. Estas deslocações humanas pertencem a todas as religiões e credos. Na Bíblia encontramos peregrinações ordenadas por Deus e outras nascidas da piedade individual ou colectiva. O centro de todas elas era os santuários por onde passaram os patriarcas, como Betel, Hébron, Bersabeia, mas principalmente Jerusalém. O encontro com Deus realizava-se no santuário, dum modo especial nas grandes festas da Páscoa, Pentecostes e Tabernáculos. Nos tempos da Igreja, as peregrinações continuam privilegiando os lugares santificados por Jesus Cristo na Terra Santa, ou pelos apóstolos, como Roma onde se veneram os túmulos de Pedro e Paulo e Compostela com Santiago. Na Idade Média, as peregrinações para além dos santuários locais, privilegiaram as relíquias dos santos. Acreditava-se que as relíquias tinham o poder de curar os doentes, tornar as terras férteis, afastar a peste e a miséria, dar a vitória ao exército. 2 - A veneração das relíquias dos santos já aparece no séc. II. Os cristãos recolhiam os restos mortais dos mártires, colocavam-nos em lugares dignos para celebrar o aniversário do seu martírio. Por vezes as relíquias eram escondidas para venerá-las em segredo. Desta forma um lugar torna-se santo e centro de peregrinação pela presença concreta de uma relíquia ou de um facto extraordinário ali acontecido. O povo cristão quer ver qualquer coisa de concreto para tocar e sentir uma presença espiritual. O lugar mais santo da cristandade foi e continua a ser o santo sepulcro de Jerusalém. O peregrino empreende uma longa viagem para tocar no mármore de um túmulo ou numa caixa que contém o corpo de um mártir. Pedaços de pano, lenços e até papéis que tocaram o túmulo do santo são levados como relíquias, porque se julga que ficaram impregnados do poder dos santos. Alguns escritores, como S. Cirilo de Jerusalém, dizem que as relíquias podem fazer milagres. Outros recolheram até o azeite da lâmpada que ardia diante do mártir ou o pó que cobria o túmulo. O culto das relíquias, desde o início do cristianismo, aparece como uma forma de piedade. Santo Agostinho, reagindo contra os maniqueus que acusavam os cristãos de idolatria, escreveu: «O povo cristão celebra a memória dos mártires com solenidade religiosa para ser incitado à imitação da sua coragem, associar-se aos seus méritos, ser ajudado pelas suas orações». A doutrina da Igreja sublinha com prudência que a santidade das relíquias salva somente os que imitam as virtudes dos santos. 3 – O que levou tantos cristãos a empreenderem viagens longas, perigosas, a exporem-se à morte, para visitar lugares tão distantes como Roma, Compostela e Jerusalém? O peregrino é movido por convicções individuais ou causas sociais que tornam a peregrinação um fenómeno difícil de definir. A alma humana sente necessidade de acreditar em qualquer coisa que transcende a precariedade da vida material de cada dia, necessita de ser protegida por um ser superior, espera um milagre de Deus através da intercessão de um santo. Quando se desconfia da ciência procura-se a protecção do alto, especialmente da mãe de Deus, para receber conforto e ajuda ou confirmar a própria fé. Em todas as peregrinações aparecem três elementos que são comuns: uma viagem que leva até uma meta, geralmente um santuário dedicado à Mãe de Deus; a chegada ao lugar onde se estabelece um contacto com o sagrado; e um caminho de regresso a casa. Alguns santuários são hoje reconhecidos pela Igreja, devido a aparições de Nossa Senhora, como Lourdes e Fátima, e têm fama internacional, foram visitados pelos Papas e têm uma mensagem doutrinal forte. A peregrinação cristã acredita na comunicação dos santos e na poderosa intercessão de Nossa Senhora. Os séculos XIX e XX foram muito ricos em aparições marianas, cada uma delas privilegiando um aspecto doutrinal. Lourdes aparece como lugar de curas extraordinárias, Fátima tem um carácter mais penitencial e, Medjugorje, ainda não reconhecido oficialmente pela Igreja, apresenta um carácter mais apocalíptico. Em nosso tempo, as peregrinações aos santuários contendo relíquias de santos são menos frequentes, enquanto aumentam as que se dirigem aos lugares de aparições marianas. Dizia o Cardeal Marty, arcebispo de Paris, que na França, sob o aspecto religioso, tudo estava em declínio, excepto as peregrinações. Devido à facilidade dos meios de transporte, organizações especializadas e assistência aos fiéis, as peregrinações hoje não correm riscos graves como no passado. Os sacrifícios e as fadigas da viagem não são considerados essenciais, apesar de não terem desaparecido em Fátima e Medjugorje. A técnica turística favorece esta forma de espiritualidade, mas uma Agência de viagem, não tem a vocação de organizar peregrinações, sem uma ligação com uma estrutura eclesiástica, porque peregrinar, embora tenha alguns aspectos semelhantes ao turismo, realmente é diferente dele. Movimenta-se noutra esfera, embora por vezes se conjugue peregrinações e tempo livre dando origem ao chamado turismo religioso. O número de pessoas que as peregrinações movimentam é muito grande, chegando nalguns países, como a Itália, a ultrapassar os 40 milhões por ano. Peregrinar é um sinal dos tempos que a nova evangelização não pode ignorar, mas deve servir-se desta corrente profunda da alma humana para uma experiência do sobrenatural, transformação da vida e dedicação ao próximo. D. Teodoro de Faria, Bispo do Funchal


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