A Páscoa é a festa principal dos cristãos. À volta dela a Igreja desenvolveu uma intensa espiritualidade de preparação e de vivência, expressa na sua liturgia oficial e nas devoções populares, com a duração de cerca de cem dias, cinquenta antes e cinquenta depois, que começam com a Quarta- Feira de Cinzas e terminam com a solenidade de Pentecostes.
É muito enriquecedor, até mesmo sob o ponto de vista cultural, estudar a Liturgia, as devoções e tradições populares, mesmo as tradições musicais do tempo da Quaresma e do tempo pascal. Mas o proveito da experiência espiritual é muito mais valioso e vale a pena aceitar este desafio de viver os próximos cem dias ao ritmo desta cultura eclesial, quer individualmente quer em grupo, sobretudo em família ou assembleias familiares. Envolver a família neste tipo de leitura e oração é uma maneira de contribuir para a estabilização dos laços familiares e ajudar ao crescimento integral de todos os seus membros.
Para quem dispõe de menos tempo ou disposição, aconselho fazer esse percurso num ritmo semanal, tomando num dos dias da semana os trechos do respectivo domingo da Quaresma e da Páscoa e lê-los pausadamente, consultando na Bíblia os textos paralelos e sobretudo o contexto imediato e posterior das respectivas leituras, terminando a sua meditação com a recitação ou cântico do salmo responsorial. Esta leitura ao jeito do que chamamos “lectio divina” (leitura orante da Sagrada Escritura) levarnos-á a uma vida mais enraizada no sentido da nossa existência, porque mais ancorada na Palavra de Deus.
A pouco e pouco, quase sem esforço, começamos a sentir uma grande paz e desejo de vivermos mais em comunhão com Deus e com o nosso próximo. Estaremos assim a contribuir para o nosso crescimento integral, a partir da dimensão mais profunda da pessoa humana, normalmente a mais descurada nos nossos tempos.
Desenvolvimento integral
O Santo Padre escreveu-nos uma mensagem para este tempo da Quaresma precisamente sobre este tema e cuja leitura recomendo vivamente. Ele parte da atitude de Jesus, que, ao ver as multidões, se encheu de compaixão por elas (Mt 9, 36), aconselhando-nos a olhar para Jesus, a fim de adquirirmos a sensibilidade do seu olhar sobre o homem, que vê nele não apenas as necessidades materiais, mas também a sua fome de Deus, levandonos a encontrar respostas que vão de encontro à satisfação de todas essas fomes do homem peregrino de Deus, fome de alegria, de pão, de paz, de amor, de cultura, de encontro. Sem este desenvolvimento da pessoa humana em todas as dimensões do seu ser não será possível encontrarmos a alegria da satisfação proveniente da harmonia de criaturas realizadas.
A Quaresma aviva a nossa solidariedade em relação às carências materiais dos que estão privados do mínimo vital, e as carências morais dos que são mutilados pelo egoísmo... as estruturas opressivas, quer provenham dos abusos da posse ou do poder, da exploração dos trabalhadores ou da injustiça das transacções, afirma o Papa, citando o nº 21 da Encíclica Populorum Progressio do seu predecessor Paulo VI. A doutrina social da Igreja, expressa em muitas encíclicas papais e outros documentos são também uma leitura aconselhável para este tempo da Quaresma.
Há poucos meses foi editado um compêndio de toda esta doutrina social, cuja leitura nos ajudará a cultivar uma consideração crescente da dignidade da pessoa humana e a desenvolver as atitudes cristãs correspondentes para com aqueles que em muitas sociedades e regimes políticos são marginalizados.
Quaresma e a solidariedade
Cultivando o olhar de Cristo sobre a pessoa humana, olhar misericordioso, compassivo, de respeito pela dignidade de todos os homens, chamados a ser filhos de Deus, a ser salvos, para tomar parte no seu Reino, os cristãos desenvolvem na Quaresma gestos e atitudes de solidariedade para com os povos e as pessoas que o desenvolvimento moderno ainda não contemplou.
Em muitas Igrejas de países ricos, por exemplo, na Alemanha, são organizadas acções de solidariedade que juntam muitos milhões para socorrer povos mais carenciados. As atitudes típicas da Quaresma, a oração, o jejum e a partilha fraterna tornam a pessoa mais generosa e mais sensível aos males do seu próximo.
Também nas dioceses em Portugal se pratica desde há alguns anos durante a Quaresma uma partilha de bens com os mais pobres conhecida como renúncia quaresmal. No ano de 2005 o produto da nossa renúncia foi destinado metade para a Fundação Bom Samaritano, organização da Santa Sé em benefício dos doentes da Sida e outras doenças crónicas em países do terceiro mundo, outra metade para ajudar a reconstruir residências paroquiais de comunidades pobres da nossa diocese. Até meados de Fevereiro foi entregue na Cúria diocesana para estas finalidades a quantia de 18.080 Euros e 57 cêntimos.
Neste ano o Conselho Presbiteral da diocese deliberou destinar o produto da renúncia também para duas finalidades, uma para terras de missão e outra para instituições sociais dentro da diocese. Assim apelamos aos cristãos e diocesanos para renunciarem a algum conforto supérfluo em benefício de quem nem sequer tem o necessário para viver dignamente.
Metade do produto das nossas renúncias quaresmais destinar-se-á à Fundação Manuel Gerardo, de Beja, orientada pelas Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria, que têm aos seus cuidados 36 meninas até aos 18 anos e 8 com mais de 18, já a fazer estudos superiores ou inseridas no mundo do trabalho, até que organizem a sua vida familiar.
A outra metade será para ajudar a paróquia de S. Miguel da Calheta, diocese de Santiago de Cabo Verde, a realizar o seu projecto social e pastoral, cujo orçamento atinge cerca de 350 mil Euros. Apelamos à generosidade de todos os diocesanos em benefício destas duas finalidades, conscientes de que ajudar irmãos mais carenciados significa encontrar-se com o próprio Cristo.
Deste modo cresceremos na caridade, na comunhão com Deus e o próximo e viveremos uma Quaresma de preparação para a Páscoa, fazendo uma experiência de crescimento integral e de transformação do mundo segundo os planos de Deus.
Todos sabemos que dar é melhor que receber, mas só quem isto pratica experimenta a verdade e a alegria desta afirmação. Com os votos de uma santa Quaresma, para poder experimentar as alegrias pascais, subscrevo-me com gratidão e amizade
† António Vitalino, Bispo de Beja