1. O forasteiro, que se intrometeu no meio dos discípulos, só mais tarde apresentou o seu cartão de identidade “ao abençoar, partir e servir pão” (Lc. 24, 13-16;28-35).
Já antes, diante do grupo dos apóstolos e na ceia comemorativa da liberdade de um povo, transformara uma liturgia de saudade num culto de mudança em todos os instantes e lugares: “Todas as vezes que comerdes deste pão... lembrareis a morte do Senhor” (1ª COR. 11, 23-26).
É a mesma presença do Invisível que diz a Moisés, no regresso dos escravos do Egipto: “Vou fazer chover pão do alto do Céu” (Ex. 16, 12-15).
2. Este não é o pão de um povo “em salto”, já não é o pão buscado pelos emigrantes de há sessenta, cinquenta ou vinte anos, os quais hoje, apesar de em bem menor número, mas com não menos angústia, continuam a bater à porta de tantos países.
Mas este é e foi sempre o pão sonhado nas noites e dias excessivos de trabalho, de tantos exílios.
O pão, que por causa do qual, cerca de cinco milhões de portugueses de cá saíram; o que lhes dava a nossa terra era suficiente, em muitos casos, para enganar a fome, mas bem escasso para quem nasceu para se respeitar a si próprio e aos seus!
O pão das nossas casas, sinal de acolhimento junto de quem, encontrando sempre lugar à mesa, se tornava companheiro e irmão.
Este é o pão escolhido e transformado em Corpo de Jesus, filho de Maria, o qual hoje nos congrega no Santuário de Fátima, nesta Semana Nacional das Migrações, sob o lema “Todos os povos são uma só família”.
Conforme o apelo do Papa João Paulo na Mensagem para o “Dia Mundial dos Migrantes e Refugiados”:
“Que Nossa Senhora nos ajude a testemunhar, com a nossa vida, Jesus Cristo, o Qual, através de nós, deseja continuar a sua obra de libertação de todas as formas de discriminação, de rejeição e de marginalidade”.
3. Que os portugueses residentes no estrangeiro sintam a ternura do seu país, e a fé da Igreja, no partir do pão, no distribui-lo aos mais desamparados, na sua missão de inteligência fraterna e de liberdade inconformista, nunca desligando os combates pela sobrevivência humana do sacramento da Eucaristia, onde depositamos o trigo e o vinho do nosso labor.
Saúdo os Senhores Bispos de Leiria-Fátima, de Bragança e de S. Tomé e Príncipe.
Para o Senhor Bispo da diocese de Créteil, Monseigneur Daniel Labille, que preside a esta peregrinação, a expressão grata e fraterna pela alegria da sua presença.
Para os portugueses(as) da sua diocese, para todos os sacerdotes, religiosos, religiosas e leigos das várias comunidades migrantes, os nossos mais cordiais cumprimentos em nome da fraternidade que nos une.
4. À semelhança dos discípulos de Emaús, do povo de Israel no deserto e das comunidades eucarísticas da Igreja nascente, há hoje sectores e meios, entre nós, em extremo desconforto.
Como estarão as famílias das pessoas falecidas nos incêndios destes dias? Como estará quem perdeu os haveres da sua penúria? E as terras e localidades do país, batidas pela tragédia, da qual jamais esquecerão o medo e a desconfiança? Como se sentirão os heróicos bombeiros, e demais pessoas que com eles colaboraram, diante da impotência das circunstâncias e da falta do necessário para proteger vidas e a natureza?
Como estarão os estrangeiros, a viverem em Portugal, os quais, após terem pago os impostos, descontado para a segurança social e com trabalho assegurado (e que o não tivessem...), ouvem da frieza de uma lei: “Vão-se embora”...?!?
E como reagirão estas mesmas pessoas, quando, volvido algum tempo, tomam conhecimento de que, a outros imigrantes, tudo lhes é facilitado para permanecerem, quando para eles, e para os demais, o futuro começa a perder o sentido?
Como será a vida de tantos imigrantes em Portugal, roubados, desprotegidos, marginalizados, os quais, no auge da fraqueza, chegam a pedir para serem presos, porque, ao menos aí, têm uma tarimba para dormir e alimento para sobreviver?
Com certeza que, ao contrário destes casos, temos exemplos corajosos de pessoas e comunidades, do ponto de vista humano e cristão. Temo-lo referido muitas vezes.
Mas clamamos em nome do esforço evangelizador: os aflitos e os doentes não se curam com estatísticas da boa consciência! Somos capazes de, por carência de eventuais recursos económicos, recusar emprego a quem incumbiria zelar também pelo desenvolvimento do país. Mas o dinheiro, que não foi dispendido em funções de vigilância e prevenção, resulta sempre em despesas muito mais onerosas!
Tinha razão Nossa Senhora, aqui em Fátima: “Mudai de vida. Mudai a forma de pensar e o modo de proceder”. A justiça e a solidariedade para com homens e mulheres, vindos de terras estranhas, são as mesmas que devemos tributar, nesta hora, a populações dizimadas pelo fogo, às quais o Papa se uniu em oração, no passado domingo, em Castelgandolfo.
Deixo aqui um apelo para que todos colaboremos generosamente com a actual campanha da Caritas Nacional e da Rádio Renascença.
5. Deixemos entrar Jesus Cristo em não poucos domínios em crise de confiança diante de pessoas e de instituições.
Que a mesa da Pátria tenha sempre lugar para quem mais precisa. Não se trata de facilitismo. Nem de infundamentada utopia. Trata-se de saber responder aos vazios da justiça.
Que não haja discriminação entre grupos geográficos de imigrantes.
Que Portugal se torne presente junto dos seus cidadãos a residirem no estrangeiro.
Que uma pastoral muito mais ampla acolha e promova todos os aspectos da vida migrante.
“O pão que o diabo amassou”, ganho em circunstâncias tão únicas, é o pão convertido no Corpo de Jesus, filho de Maria.
Celebrar a Eucaristia é celebrar a Esperança, nesta intranquilidade diante do que há a transformar no coração de cada um de nós e do Portugal de hoje.
Só a justiça e o amor nos guardarão!
Fátima, 12 de Agosto de 2003
Januário Torgal Mendes Ferreira