Homilia do Arcebispo de Braga na Eucaristia de Domingo de Ramos
A Semana Santa é momento privilegiado para a meditação. Há muitas solicitações exteriores. Podem distrair-nos do essencial. Concentremo-nos e não deixemos passar mais esta oportunidade.
Recordando o acolhimento festivo prestado a Cristo na Sua entrada triunfal em Jerusalém, mergulhamos nos conteúdos dramáticos da Paixão. Tudo nos recorda o amor superficial, de circunstância, daquelas multidões. Neste é muito fácil estar e permanecer. Teremos de avançar e caminhar nas exigências dum amor difícil.
No plano que me decidi seguir durante esta Quaresma – ir comentando a Deus caritas est - quero perscrutar – e convidar-vos a idêntica experiência – em Jesus como o amor encarnado do Pai. Cada Cerimónia Litúrgica será mais um momento para descortinar aspectos novos. Cristo, nas Suas palavras e nas Suas obras, manifesta como Deus quer que o Seu amor resplandeça.
Hoje, sirvo-me de três parábolas (recordadas pelo Papa). Como parábolas são abrangentes e abrem-se a perspectivas repletas de actualidade. Estão aí como grito esquecido e que se devem tornar mensagens acolhidas.
1 – O Rico Avarento (Lc. 16, 19 – 31) continua a repetir alertas colocando-nos perante o essencial. Ele tinha conhecimento do deveria ser. Quis ignorar ou esquecer. Tarde se apercebeu do que vale e permanece. Tinha optado pelo prazer e critérios de felicidade fácil, desconsiderando os ensinamentos do passado. Fechou os olhos à realidades que estavam na sua vida. Não quis ver. Alheou-se. Deus respeitou a liberdade da não correspondência ao Amor. Só que o tempo passa e nunca voltará a oferecer oportunidades. Perdidas uma vez, perdidas para sempre.
Também hoje o caminhar quotidiano está repleto destes apelos que passam e não voltam. Muitas vezes apetece reiniciar e aproveitar as ocasiões perdidas. Elas passam e não voltam. O grito do “rico avarento” diz-nos da necessidade de “acautelar” a vida, regressar “ao bom caminho” do amor a Deus e aos outros.
2 – A figura do Bom Samaritano (Lc. 10, 25 – 37), sublinha que a actualização do amor tem a dimensão da humanidade e nunca se pode restringir a grupos de predilectos ou preferidos. Cristo veio abolir as barreiras das raças, dos credos, das nações e criar uma “comunidade solidária” que nunca admite fronteiras ou condicionantes. Vive-se para quem se encontra e a todos se entrega a dedicação do mesmo Cristo.
No mundo moderno, perante um fenómeno de globalização que poderia aproximar, assistimos a uma fragmentação da sociedade onde se colocam barreiras de hostilidade ou, ainda mais grave e frequentemente, de indiferença. A comum dignidade de todo e qualquer ser humano não permite fenómenos de marginalização ou exclusão. O fundamentalismo intolerante, o racismo selectivo e destruidor, o terrorismo ameaçador, os actos de vandalismo por razões ideológicas ou de represália, tudo deve ser excluído. Só uma integração universal permite uma verdadeira igualdade, fundamento duma democracia justa que a todos acolhe mesmo não concordando com os critérios que orientam as opções dos outros.
Neste acolhimento universal, precisamos de acolher a vida como dom a iniciar na concepção e a consumar-se numa morte digna. Difunde-se uma mentalidade de querer a reconhecer só certos parâmetros e realizam-se actos que nunca se podem integrar numa humanidade evoluída. Fala-se no progresso, ciência e esquece-se o essencial. Esta universalidade não se pode refugiar nos discursos bem elaborados e nas considerações das declarações assinadas em momentos históricos. O amor exigido nunca pode ser “genérico e abstracto”, “pouco comprometedor”. Com ele está um empenho prático no “aqui” de muitas situações e no “agora” de muitos momentos. E a cultura da vida, perante o acentuar-se da cultura da morte, vai exigir aos católicos muita coerência e autenticidade.
Como refere o Santo Padre, “continua a ser tarefa da Igreja interpretar sempre de novo esta ligação entre distante e próximo na vida prática dos seus membros”. Só uma atitude reflectida se aperceberá de tantos momentos difíceis que exigem um “próximo” que pare e se detenha. O anonimato e o caminhar ao lado das situações nunca favorece uma sociedade justa e fraterna.
Iniciamos a Quaresma aceitando, com Jesus, ter compaixão pelas multidões. A Semana Santa convida a reconhecer que Ele deu a vida pelos Seus. Isto é o núcleo central de todo o cristianismo e, nesta perspectiva, o cristão não se resigna a elencar ou denunciar situações degradantes ou lesivas da dignidade humana. Vai ao encontro e transforma a palavra amor num programa que revela o rosto de Deus.
3 – Se Jesus é o amor encarnado de Deus, reconhecemos outra perspectiva na consideração da parábola do Juízo Final. Aí o amor vivido é “o critério para a decisão definitiva para o valor ou inutilidade duma vida humana”. Esta sendo dom de Deus terá de tornar-se dom e o cristianismo deve apresentar-se como doação a todos e, particularmente, aos necessitados.
Habituamos, e ainda estamos imbuídos deste espírito, a situar o cristianismo no interior das igrejas tornando-o culto vazio de significado, uma vez que as “ofertas” não incidiram sobre a vida. Vivíamos a pensar na vida eterna a alcançar como recompensa e projectávamos o cristianismo neste âmbito de vida que há-de vir. Cremos e devemos aprofundar sempre mais a nossa fé na vida eterna. Mas esta é caminhada iniciada no amor que vivemos para atingirmos Deus-Amor. Cristo identificou-se com todo e qualquer ser humano e a recompensa está no fazer e o grande pecado está na omissão de quem se desliga das questões. “Amor a Deus e amor ao próximo fundem-se num todo: no mais pequenino, encontramos o próprio Jesus e, em Jesus, encontramos Deus” (D.C.E. 15). Como estamos longe desta identidade…
Vamos viver uma Semana particular. Quisemos colocar-nos perante Deus Amor. Tudo nos convidará a penetrar na “Divina Comédia” ou “Na Divina Aventura” de reconhecer que estamos sempre a reiniciar este jogo de amor. “O amor ao próximo é uma estrada para encontrar também a Deus, e fechar os olhos diante do próximo torna cegos também diante de Deus”. Só O vermos e O veremos eternamente, se agora O reconhecemos.
+ Jorge Ferreira da Costa Ortiga, Arcebispo Primaz