Homilia do Arcebispo de Évora nas Exéquias de D. David de Sousa
1. “Felizes esses servos que o Senhor, ao chegar, encontrar vigilantes”(Lc.12, 37). Estas palavras do evangelista S. Lucas, assumem um relevo e significado especiais nesta assembleia, que se reúne para a celebração das exéquias do caríssimo Senhor D. David de Sousa, Arcebispo emérito de Évora
Elas vêm recordar-nos, antes de mais, que a dor de o vermos partir do nosso convívio terreno é superada pela esperança de que para os servos fiéis a morte abre as portas para a felicidade, uma felicidade que não conhece ocaso: “Felizes esses servos”.
D. David faz parte daquela legião de homens que se deixaram apaixonar por Jesus Cristo. Toda a sua existência, uma existência muito longa (noventa e quatro anos) e plena de méritos, teve a assinalá-la uma profunda fé e uma entrega total ao serviço do Reino de Deus.
Deus chamou-o, quando ainda era jovem, para que seguisse as pisadas de S. Francisco de Assis. O ideal de simplicidade, pobreza, obediência e fraternidade fascinou-o. Dotado dum carácter forte e decidido, disse a Deus um “sim” generoso. Entrou na Ordem franciscana, onde foi ordenado sacerdote.
Foi neste clima de espiritualidade franciscana que aprendeu a servir o Senhor e os homens. Serviu, na oração e no estudo, e em diversas e relevantes missões. Formado em ciências bíblicas, exerceu a docência nesta área da teologia durante longos anos.
Podemos dizer que a Sagrada Escritura foi o alimento perene da sua vida de fé, como se pode ler nesta oração contida no seu testamento espiritual: “Concedei-me, Senhor, a graça de ser, à luz da Sagrada Escritura e ao farol da Sagrada Eucaristia, tocha ardente, até à sua completa extinção”.
2. Mas, se a Ordem franciscana foi o terreno fértil onde se desenvolveu e consolidou a sua vocação eclesial, podemos afirmar que a vocação central da vida cristã de D. David foi a o ministério episcopal, na sucessão do serviço conferido pelo Senhor aos Doze Apóstolos.
Exerceu-o primeiramente na Diocese do Funchal e, em seguida, na Arquidiocese de Évora.
Esta histórica Sé Metropolitana foi testemunha silenciosa, durante dezasseis anos, da sua entrega abnegada à Igreja de Jesus Cristo que vive e peregrina em Évora. Um serviço feito de trabalho e silêncio, de oração e sofrimento, de suores e incompreensões, de lágrimas e esperanças.
A sua acção pastoral ficou assinalada por importantes iniciativas, das quais é justo destacar a reestruturação das paróquias, o incremento das vocações, o desenvolvimento dos seminários e a criação do Instituto Superior de Teologia de Évora.
3. Os caminhos de Deus são, porém, misteriosos. Quando era legítimo pensar que a sua missão pastoral nestas planuras do Alentejo e do Ribatejo ainda não chegara ao fim, eis que motivos de doença obrigaram D. David de Sousa a recolher ao Convento franciscano da Luz em Lisboa. Retomava assim a vida conventual, oferecendo, duma outra forma, a sua vida pela Arquidiocese à qual se mantinha espiritualmente vinculado através duma aliança que não morre nem se extingue com a ausência física.
Foi longo este segundo percurso conventual que, nas últimas etapas, assumiu o carácter duma subida ao Calvário. Uma subida que tem, à luz da fé, o significado dum aproximar-se da Casa do Pai. Assim o experimentou o ilustre Prelado Eborense, como deixou escrito nesta bela prece do seu testamento espiritual: “Senhor, concedei-me a graça de caminhar prontamente em paz, para o Vosso Reino, cheio de confiança nas Vossas promessas e reconfortado som o Corpo e Sangue de Cristo. Eu aguardo, confiadamente, a toda a hora e momento, a Vossa Chamada Divina”.
4. O Mistério do Corpo e o Sangue de Cristo, foi portanto, para usar a sua própria expressão, o seu conforto, o seu alimento, o seu farol. Durante quase setenta anos celebrou o grande Mistério Eucarístico, penhor da nossa ressurreição.
Celebrou-o tantas vezes neste mesmo altar, com os sacerdotes e a comunidade diocesana aqui representada na expressão mais alta e significativa da Igreja de Cristo.
Hoje já não consagra o pão e o vinho, mas canta diante do trono do Cordeiro Imolado o hino de glória, de louvor e de acção de graças.
Através do nosso antigo e venerando Pastor, a presente Eucaristia revela em termos expressivos a vinculação profunda a misteriosa do altar terreno com o trono do Cordeiro de que fala S. João no Apocalipse (cf.Ap.4.2-11).
Como escreveu o Papa João Paulo II na encíclica Ecclesia de Eucharistia, “ ao celebrarmos o sacrifício do Cordeiro unimo-nos àquela multidão imensa que grita: “ a salvação pertence ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro (Ap.7,10)”.
É neste clima da comunhão dos santos que nos despedimos do caríssimo Pastor da Igreja de Évora, D. David de Sousa.
5. Fazemo-lo, evocando Nossa Senhora da Conceição, Mãe de Cristo e nossa Mãe, Padroeira desta Arquidiocese e de Portugal. Conhecemos a terna devoção que o Senhor D. David tributava à Santíssima Virgem. Voltemos ao seu testamento espiritual: “Com Nossa Senhora, no seu Cântico de louvor “Magnificat” (Lc.1,46-47), eu alegro-me no Senhor, eu glorifico o Senhor e dou-lhe infinitas graças pelo dom de ter realizado a minha longa peregrinação pela terra: na pobreza, na dor, no trabalho, na fraqueza e na morte como preço respectivamente do reino dos Céus, da Alegria, do Descanso, da Glória e da Vida”.
Estas sentidas palavras do nosso saudoso e amado Arcebispo sejam para nós, que continuamos a peregrinar na terra, luz e estímulo para vivermos e testemunharmos uma fé sólida em Jesus Cristo, um profundo amor à Igreja e uma sincera devoção a Maria, a sermos construtores do Reino de Deus, Reino de paz, de justiça e de amor.
Sé de Évora, 8 de Fevereiro de 2006
+ Maurílio de Gouveia, Arcebispo de Évora