Documentos

Sociedade de São Rafael: um laicado para a protecção dos migrantes

Albertino Silva
...

I Congresso Mundial do Movimento dos Leigos Scalabrinianos

I Congresso Mundial do Movimento dos Leigos Scalabrinianos - Piacenza, 1 a 5 de Junho de 2005 Intervenção de Albertino Silva, do núcleo em Portugal do Movimento de Leigos Scalabrinianos 1. INTRODUÇÃO Foi-me pedida, para este 1º Congresso Mundial, uma leitura sapiencial das raízes dos Leigos Scalabrinianos, a partir da fundação da Sociedade de S. Rafael. Mais do que os factos históricos, já conhecidos por todos, certamente, importa realçar as intuições de Scalabrini ao fundar esta Sociedade de Leigos, dotada de autonomia, e daí retirar as devidas consequências para o mundo de hoje e, especialmente, para a revitalização do Movimento de Leigos Scalabrinianos. Ao iniciar a minha reflexão, quero fazer memória de todos aqueles e aquelas que deram corpo, desde o início, a este Movimento, iniciado em 1887, e que nos legaram um património que nos cabe descobrir, aprofundar e concretizar face aos novos e crescentes fluxos migratórios que, por todo o mundo, se verificam. Tenho tido o privilégio de privar, desde 1991, com o missionário Pe. Luigi Tacconi, um dos continuadores, entusiasta e apaixonado, deste projecto laical ao serviço dos migrantes através da criação da AMSE. 2. SCALABRINI, O PASTOR ATENTO «Não há mais grego e judeu, circunciso e incircunciso, bárbaro, escravo e livre, mas Cristo é tudo em todos» (Col 3, 11) 2.1. A atenção à realidade A segunda metade do século XIX foi marcada por um êxodo maciço de populações italianas para a América do Norte e para o Brasil. Este fenómeno europeu atingiu profundamente as populações de Itália que, diante do desemprego e da fome, procuraram um novo rumo para a sua qualidade de vida (cf. Jo 10,10). Esta realidade atingiu profundamente a vida política e social da Itália de 1800. Scalabrini, bispo de Piacenza, marcou o seu episcopado pela atenção permanente às necessidades espirituais e temporais do povo que lhe fora confiado. Disso são testemunho as numerosas iniciativas de apoio, de resposta concreta, aos problemas que encontrou, nomeadamente a atenção aos doentes, às mondadoras de arroz e outros trabalhadores sazonais em mobilidade interna, o reconhecimento da dignidade dos portadores de deficiência – com a criação dos Instituto dos Surdos-Mudos, atenção aos presos, a promoção dos cegos para quem fundou um instituto, a instituição da sopa dos pobres tendo chegado a alimentar cerca de 4000 pessoas, recorrendo, para isso, à venda de bens preciosos que considerava desnecessários perante a carestia então vivida; o próprio cálice de ouro que lhe fora oferecido por Pio IX foi vendido com esta finalidade solidária. A sua preocupação constante com a saúde física, moral e espiritual dos emigrantes, que rumavam a novas e longínquas paragens, levaram-no a procurar uma resposta integral que salvaguardasse a sua dignidade. 2.2. O profundo respeito pela dignidade da pessoa humana Alimentado pela força da oração frequente e pela Eucaristia diária, o grande segredo, a fonte renovadora da sua grandiosa acção, Scalabrini foi o profeta dos novos tempos que intuiu a urgência duma Igreja portadora da Boa Nova de Jesus Cristo a todos, duma feliz notícia incarnada na história do seu tempo, capaz de apontar caminhos de felicidade e de dignidade às pessoas a quem a crise económica e social roubara a força da esperança e a alegria de viver. O Beato João Batista Scalabrini, atento à voz do Espírito e aos sinais do seu tempo, foi o intrépido defensor dos direitos humanos dos últimos, enfrentando corajosamente os poderes instituídos e denunciando a sua incapacidade de resposta perante os graves problemas humanos que então se viviam. Homem de comunhão, procurou, até ao limite (Jo 13,1), buscar soluções de consenso para responder às problemáticas sócio-pastorais para as quais urgia encontrar soluções dignas, concretas e actuais. Nesta linha, foi o grande precursor do Concílio Vaticano II, nomeadamente da Constituição Pastoral Gaudium et Spes e da Declaração Dignitatis Humanae, ao fazer suas as alegrias, as esperanças, as tristezas e as angústias das pessoas do seu tempo, independentemente das suas origens sociais e da sua pertença religiosa. Para Scalabrini, todos eram pessoas a reabilitar, devolvendo-lhes aquilo a que, por desígnio do Criador, tinham direito: uma pátria, uma língua, uma identidade, uma família reunida, trabalho digno, um património cultural, direitos sociais, culturais e religiosos, … 3. MUITAS RAÍZES, UMA SÓ TERRA – AS INTUIÇÕES DE SCALABRINI «terra mãe terra única vária de raízes flores frutos azul verde todas as cores sonho mãe maravilhosa terra mãe terra vida em paz senhora nossa raízes brancas negras vermelhas amarelas todas à uma festa vida em paz senhora nossa terra mãe terra (água vento azul verde rio fonte luz montanha árvore lagoa rocha barro grão de areia brilho flor erva pássaro homem casa riso…) terra nossa mãe» (JAB). 3.1. Uma terra e uma pessoa a preservar Este poema recorda que a terra em que vivemos é uma, é una, apesar da diversidade de solos que a compõem: a terra escura e fértil onde germinam as plantas, o barro vermelho que o oleiro molda, a rocha firme em que o alpinista se pode ancorar, a areia movediça onde se espraia o oceano… Nesta terra crescem raízes donde brotarão as árvores, também elas tão diversas, os arbustos, as tenras plantas, as pequenas ervas. Uma só terra, muitas raízes, uma só seiva! Scalabrini, desde cedo, descobre que, à luz da fé em Jesus Cristo, existe uma radical igualdade entre toda a pessoa humana, independentemente da sua origem, estatuto social, nacionalidade, grupo de pertença política ou religiosa. Em Cristo há apenas uma terra onde germinam diversas raízes e corre uma única seiva! Somente à luz desta convicção profunda se pode compreender o empenho abnegado do bispo João Batista Scalabrini ao afrontar a problemática da emigração europeia e descobrir nela uma ocasião providencial para que a Igreja fosse fiel ao seu Senhor, vendo em cada migrante o rosto de Cristo pobre e humilhado que é urgente defender, reabilitar e desvendar. Para Scalabrini não há terra de origem nem terra de destino: apenas há uma terra e a pessoa humana a preservar! Por isso decide encurtar a própria distância entre as duas terras, sulcando com os seus missionários e leigos o Atlântico. A viagem é um momento importante de “transição” e de “continuidade” da única terra, da única Igreja. Que ninguém se perca pelo caminho, nos perigos dos portos e nas vicissitudes da difícil travessia… 3.2. A escuta e a busca de soluções É neste contexto que Scalabrini, muito atento à realidade e desafiado pelo Espírito, lê a realidade migratória – a sua estação de Milão – e procura incansavelmente criar estruturas que respondam com eficácia, rapidez e dignidade às necessidades dos emigrantes que rumavam aos portos italianos de Génova e Nápoles, aos portos europeus de Antuérpia, Hamburgo ou do Havre. Consciente da importância do apoio espiritual dos sacerdotes aos emigrantes, cedo compreende que se torna igualmente necessária a presença e a acção comprometida dos leigos no apoio imediato e directo aos mesmos emigrantes nos locais de partida e de chegada, mas também numa acção concertada de denúncia da injustiça social existente e da exploração dos migrantes indefesos, na criação duma opinião pública esclarecida que se dedicasse ao estudo desta problemática e procurasse influenciar os organismos da administração do Estado para a elaboração de leis justas que defendessem os emigrantes. Para a prossecução destes objectivos Scalabrini procura conhecer as iniciativas organizadas existentes e colher a sua experiência, contactando, por isso, com personalidades que tinham criado estruturas com algumas destas finalidades. Neste sentido, podemos afirmar que Scalabrini não foi totalmente original: inspira-se, entre outras, na União de S. Rafael, constituída na Alemanha em 1868, e na Associação Nacional de apoio aos Missionários Italianos de Florença, coordenada pelo Ernesto Schiapparelli e criada em 1867. 3.3. A grande intuição de Scalabrini Todavia, Scalabrini inspira-se nestas associações, mas não abdica de imprimir o seu cunho pessoal ao fundar a Associação de Leigos São Rafael, para os Emigrantes, em 1887. Para Scalabrini o facto da maioria das associações se ficar pela acção sócio-caritativa era profundamente redutor do importante trabalho que se impunha desenvolver no apoio integral ao emigrante. Queria ir mais longe, ir à raiz, passando da simples assistência caritativa de emergência a uma acção social entendida como o conjunto de iniciativas cívicas, sociais, religiosas em torno do fenómeno migratório e suas causas. Encontrou em Volpe Landi um fiel colaborador que pertencia à Obra dos Congressos. Nesta linha e com este objectivo claro, Scalabrini desenvolve contactos assíduos com dirigentes dos grupos políticos de então, liberais e conservadores, situação nem sempre bem vista pela Santa Sé, tendo em conta que se vivia a “questão romana” e a luta entre “católicos transigentes e intransigentes”. Scalabrini, demonstrando sempre uma profunda paixão pela unidade, soube manter-se acima das disputas e divisões que grassavam na sociedade italiana de 1800. Ao criar a Associação S. Rafael, Scalabrini decide que esta deveria estar aberta à participação de todas as pessoas, independentemente da sua pertença política ou religiosa, e livre da tutela dos clérigos e religiosos. Scalabrini funda a Sociedade de Leigos S. Rafael com um estatuto autónomo, valorizando, assim, já em 1887 a legítima autonomia dos leigos e da sua acção no mundo. Scalabrini acautelou o carácter laical da Associação. Autonomia, não oposição, nem acção divergente. Em Scalabrini foi sempre clara a necessidade da existência de uma cadeia de solidariedade nas várias fases do processo de emigração de modo a proteger as populações desde o momento de partida, durante a viagem e no local de destino. E esta cadeia de solidariedade apenas podia existir na medida em que fossem criadas relações de colaboração mútua entre a Associação e os Missionários. 3.4. A busca de parcerias Scalabrini foi pioneiro, podemos dizê-lo, ao defender que a criação da Sociedade de S. Rafael se inserisse numa rede de parcerias mais abrangente existente na Itália e na Europa. Scalabrini foi, no seu tempo, o primeiro bispo a estabelecer um acordo com Estado para concretizar os objectivos de acolhimento, de assistência e de protecção jurídica aos emigrantes. Todavia, este seu sonho pioneiro foi curto; a situação político-religiosa vigente e o posicionamento da Propaganda Fide (Santa Sé) criaram demasiados obstáculos e o mesmo não vingou. Ao criar a Associação S. Rafael, Scalabrini requer o envolvimento de todos, independentemente de opções político-religiosas, como vimos, de modo a evitar que a Sociedade ficasse refém de elites, ainda que laicais. Para Scalabrini, tratava-se de um movimento social, de uma sociedade aberta a todos; sempre recusou uma instituição elitista. Refiro pela sua importância e actualidade, a intuição profética de Scalabrini fazer constar dos estatutos da Sociedade um duplo objectivo: «cooperar para manter viva nos italianos emigrados a fé católica e o amor à pátria» e de « prestar sempre assistência aos italianos de outras confissões». Contra a vontade do Prof. Toniolo, Scalabrini, talvez influenciado pela experiência pluriétnica e plurireligiosa da Sociedade S. Rafael alemã, reconhece, em pleno séc. XIX, que a humanidade é uma só e que todos são filhos de Deus, antecipando-se, cerca de um século, ao reconhecimento conciliar da liberdade religiosa e do respeito pelas diversas confissões e religiões, lançando as raízes de uma experiência ecuménica incarnada. 3.5. O diálogo com o mundo Outro aspecto relevante diz respeito ao facto de Scalabrini ter procurado comprometer com os objectivos da Sociedade de S. Rafael os homens da cultura e os expoentes das ciências económicas e sociais do tempo, nomeadamente o Prof. Toniolo, que se veio a revelar seu íntimo colaborador. Para Scalabrini, era fundamental conquistar para esta causa as forças vivas, as elites intelectuais, o movimento sindical e a classe política porque o fenómeno migratório era uma realidade nacional e internacional imparável. Para Scalabrini era claro que não existiam duas sociedades distintas: apenas existia uma única “terra”, sujeita a um profundo processo de transformação social, que importava congregar com o único objectivo de defender intransigentemente a dignidade da pessoa humana do emigrante. Podemos afirmar que com João Batista Scalabrini o diálogo Igreja-Mundo conheceu um momento elevado e frutífero, nem sempre compreendido. Sendo certo que muitas destas intuições de Scalabrini foram de difícil concretização por causas diversas, nomeadamente por falta de meios humanos e económicos, podemos afirmar que com Scalabrini nasceu, em Piacenza, o Movimento de Leigos Scalabrinianos. 4. A METÁFORA DA TERRA Retomando a metáfora da terra, atrás mencionada, podemos afirmar que Scalabrini: a) colheu a experiência das sementes já lançadas à terra a partir da análise da realidade dos emigrantes e do movimento social, então, organizado noutras regiões de Itália e da Europa; b) imprimiu o seu cunho pessoal a este movimento social, reforçando as raízes mas respeitando a semente; tal aconteceu quando procurou, a todo o custo, manter a militância social em prol dos emigrantes plural e não confessional; c) fertilizou a terra criando as condições necessárias para que esta fosse trabalhada de modo que a opinião pública, o mundo académico e associativo, a sociedade civil, a classe política e a própria Igreja fossem sensíveis às novas problemáticas geradas pelo fenómeno migratório, estabelecendo uma plataforma de diálogo entre a sociedade civil e a Igreja; d) fomentou o serviço em rede, permitindo o acompanhamento social, moral, religioso e sanitário dos emigrantes nas diversas etapas da sua viagem, numa linha de corrente solidária e fraterna qual seiva comum a toda a raíz que, na terra, alimenta e suporta a planta; e) conferiu uma dignidade nova e irreversível ao serviço aos migrantes, elevando-o a um patamar superior – o da defesa inalienável da dignidade da pessoa humana na sua totalidade – desenvolvendo as raízes do movimento laical e legitimando a sua autonomia ao serviço do mundo; f) reconheceu nos leigos o seu papel de mediadores de comunhão ao serviço dos migrantes, estabelecendo pontes entre a Igreja de partida e a Igreja de acolhimento porque são a mesma Igreja cuja raíz é Jesus Cristo; g) procurou, ancorado em Jesus Cristo, a videira da qual brotam os ramos (Jo 15, 5), cuidar deles incentivando os leigos a uma militância social radicada na profundidade da oração, centrada em Jesus Cristo, e, só assim, autenticamente incarnada na história humana. Em Scalabrini é total a simbiose entre oração e acção, o seu grande testamento espiritual aos Missionários e aos Leigos de ontem e de hoje, o grande desafio de não ceder à tentação de privilegiar uma dimensão em detrimento da outra. Scalabrini tinha uma convicção profunda - «sem mim nada podeis fazer. Se alguém não permanece em mim é lançado fora e seca» (Jo 15, 5-6). 5. SCALABRINI FECUNDOU AS RAÍZES DUMA NOVA TERRA Ontem como hoje, o ser humano parte em busca de melhores condições de vida ou, como frequentemente acontece, é forçado a partir por motivos de guerra, de fome, de epidemias ou de falta de trabalho. A Europa de 1800 viu partir milhares de filhos em busca de pão para as Américas e para o Brasil. Hoje, a Europa ocidental e central vê-se confrontada com a chegada de grandes fluxos migratórios das populações de África e da Europa Oriental que vêm à procura do pão e do trabalho que as suas terras de origem lhes negam. Hoje, a Europa a «vinte e cinco» está a transformar-se numa fortaleza impenetrável que nega ao ser humano, sobretudo estrangeiro, o direito ao pão e ao trabalho. Scalabrini legou-nos, caros amigos, uma responsabilidade imensa: a de sermos servidores dos migrantes que cruzam mares e ares. Fecundou as raízes duma nova terra, foi profeta dos tempos novos que vivemos. Hoje, as estações e os portos de embarque transformaram-se em aeroportos mas os desafios são os mesmos: como conseguir o acordo da sociedade civil, dos Estados, dos legisladores, dos movimentos cívicos e até das igrejas locais para que os imigrantes sejam dignamente acolhidos e integrados? Como manter viva, nos nossos grupos, no nosso Movimento, a «espiritualidade incarnada», a grande arma de Scalabrini para enfrentar as dificuldades? Como ser fiel ao carisma inicial da relação de autonomia e colaboração mútua relativamente aos Missionários de S. Carlos? Como evitar que o nosso Movimento de Leigos se transforme numa elite? Como comprometer neste projecto os próprios migrantes já integrados? Há uma só terra, não o esqueçamos, mas possui muitas e diversas raízes! Albertino Silva


Migrações