Homilia de D. António Carrilho, Bispo do Funchal, nos 60 anos da Igreja de Nossa Senhora de Fátima, em Benoni, África do Sul
1. Esta linda igreja de Nossa Senhora de Fátima acolhe-nos a todos, nesta tarde, para a comemoração dos 60 anos da sua bênção.
Trata-se, portanto, irmãos e irmãs, de um momento muito significativo para todos nós. Um dia particularmente oportuno para, em primeiro lugar, darmos graças a Deus por este templo, que ao longo de seis décadas tem congregado várias gerações de emigrantes portugueses, unidos pela Fé comum e pela mesma devoção à Virgem de Fátima.
Esta é também a hora de recordar e homenagear todos aqueles e aquelas que, durante todo este tempo, com o seu trabalho, as suas ofertas, a sua dedicação e a sua oração, têm ajudado a unir a comunidade à volta desta igreja. A casa de Deus onde nos encontramos é expressão concreta da melhor herança que alguma vez recebemos: a nossa Fé em Cristo.
Finalmente, e em terceiro lugar, gostaria de vos dizer que esta é, igualmente, uma ocasião privilegiada para lançar às novas gerações o desafio do futuro, não apenas do seu futuro pessoal ou familiar, mas também o futuro do seu testemunho crente, o futuro da fé católica entre os emigrantes, nesta terra que, um dia, a todos vos acolheu.
Foi assim há 60 anos...
Reunimo-nos hoje porque, na passada sexta-feira, dia 14, fez precisamente 60 anos que o senhor Cardeal D. Teodósio Clemente de Gouveia, madeirense nascido na freguesia de S. Jorge, concelho de Santana, que era nessa data Arcebispo da Diocese de Lourenço Marques, actual Maputo, inaugurou solenemente e benzeu a igreja onde nos encontramos.
O mundo atravessava, então, um momento muito difícil. Tinham passado apenas três anos após o fim da Segunda Guerra. É verdade que Portugal tinha escapado à violência da guerra, mas não escapou às suas consequências. E, por isso, eram muitas as famílias que, nesse tempo, passavam por grandes dificuldades. De entre vós todos aqui presentes, quantos não se lembrarão da fome e das privações dos anos quarenta, em grande parte por causa da terrível guerra que devassou o mundo?
Estas circunstâncias ajudam-nos a perceber como o esforço e a generosidade para edificar esta igreja foram verdadeiramente admiráveis! E, num olhar que só a fé nos pode dar, diremos que somente a protecção constante da Senhora de Fátima pôde garantir que semelhante obra alcançasse uma feliz conclusão!
Contam precisamente as crónicas que a imagem da Virgem Peregrina, que algum tempo antes tinha estado na nossa querida ilha da Madeira, acompanhou o senhor Arcebispo na viagem de avião que o trouxe desde Lourenço Marques. E o saudoso padre Carlos Camacho, grande obreiro da construção deste templo, também ele se emocionou diante da imagem de Nossa Senhora: «a presença da Imagem de Nossa Senhora de Fátima! Quem o poderia prever? (...) A sua presença neste dia aqui convence-nos que à celeste rainha e Padroeira agradou a filial homenagem dos Portugueses do Transvaal e que ela veio assistir à Sua e vossa Igreja, em testemunho da maternal anuência e gratidão».
É pois, com os olhos postos na Senhora que há 91 anos veio trazer aos três pastorinhos de Fátima – e através deles ao mundo inteiro – uma mensagem de conversão e de paz, que vos convido a reflectirmos juntos a Palavra que a liturgia de hoje nos propõe.
Leituras deste Domingo
2. Celebramos o XXXIII Domingo do Tempo Comum. Isto quer dizer que, no próximo Domingo, se Deus quiser, celebraremos a Solenidade de Cristo Rei, com a qual encerramos o ano litúrgico. E de hoje a quinze dias daremos início ao Advento, tempo de particular preparação para o Natal, vivido pelos madeirenses de maneira única, através da antiquíssima e muito bela tradição das Missas do Parto.
As leituras deste Domingo recordam-nos a todos a grave responsabilidade de sermos, no tempo e no lugar em que vivemos, testemunhas conscientes e comprometidas do projecto que Deus tem para toda a humanidade. Porque ter fé, irmãos e irmãs, é acreditar profundamente que Deus tem um projecto para o mundo e para cada um de nós e que Ele conta realmente connosco para que esse Seu projecto possa tornar-se realidade, à imagem deste templo que, antes de se tornar o belo edifício que hoje contemplamos, foi também projecto e sonho no coração e na mente de todos quantos se empenharam na sua construção.
A primeira leitura de hoje é tirada do “Livro dos Provérbios”. Este é um livro que apresenta vários ditos, sentenças, máximas, provérbios, onde se tornam presentes a reflexão e a experiência de várias gerações de “sábios” antigos. O objectivo desses provérbios era dar a cada pessoa uma espécie de chave ou segredo para viver em harmonia consigo mesma e com os outros, e assegurar desse modo uma vida feliz, próspera e tranquila.
A mulher virtuosa
Nesta linha, o texto que hoje nos é proposto é uma espécie de poema acerca da mulher virtuosa. Quais são, então, segundo a passagem que escutámos, as características da mulher virtuosa?
Podemos apontar quatro: antes de mais, é a mulher que gere bem a casa e não deixa que nada falte; depois, é a mulher diligente, que trabalha a lã e o linho para que os seus familiares tenham agasalhos suficientes para o tempo do frio e se encarrega dos trabalhos domésticos; é, em terceiro lugar, a mulher de coração generoso, que acolhe o infeliz com carinho e partilha generosamente com o pobre que lhe pede auxílio; finalmente, é a mulher que não se preocupa com a sua aparência, mas procura viver no temor do Senhor. Esta expressão «viver no temor do Senhor» significa respeitar os mandamentos, aceitar com humildade e confiança a vontade de Deus e os Seus projectos, obedecer-Lhe e viver em intimidade com Ele.
Julgo que todos podemos ver, nesta mulher que a Bíblia nos apresenta, as qualidades e as virtudes de tantas mães e esposas! Imagino quantas de vós – ou quantas das vossas mães – com os maridos longe, emigrados em terra estranha e distante, souberam educar os seus filhos com dedicação e valentia, vencendo as lágrimas e a saudade, através da diligência, do trabalho, da generosidade e daquela confiança em Deus que permite tudo suportar com fortaleza de ânimo e perseverança. E quantas das mulheres aqui presentes têm sido o amparo de seus maridos e filhos, e o seu suporte e apoio, não apenas em casa mas também nos trabalhos e em todas as horas difíceis! Em cada uma delas, revejo a «mulher forte» de que nos fala o livro dos Provérbios e, por essa razão, quero expressar-lhes uma sincera homenagem e deixar-lhes uma palavra de gratidão.
E se é verdade que o mundo de hoje é tão diferente daquele em que viveu o autor sagrado, também é verdade que os valores humanos, referidos na primeira leitura, permanecem sempre actuais, pois são valores baseados não na aparência, mas naquilo que realmente nos constrói como pessoas e nos realiza na nossa humanidade mais autêntica.
Coerência e vigilância
3. A segunda leitura, tirada da primeira Epístola de São Paulo aos Tessalonicenses, refere-se a uma questão que, ao tempo, perturbava muito os crentes, inquietos por saber quando se daria a segunda vinda do Senhor. Teria Paulo alguma indicação concreta acerca disso? Seria possível prever uma data? É certo que não! Paulo mostra-se convicto de que esse acontecimento se dará proximamente; no entanto, a data exacta é desconhecida e imprevista.
Por isso, os crentes devem estar atentos para não serem surpreendidos. Paulo utiliza duas imagens: a de um Deus que nos surpreende como um ladrão que chega de noite; e que essa vinda dá-se como as dores de parto que surgem de repente. Por este motivo, irmãos e irmãs, a vida cristã deve ser marcada por uma atitude de preparação e de constante vigilância. O que importa não é saber quando se dará a segunda vinda de Cristo, mas que vivamos de forma coerente com a opção que fizemos no dia do nosso Baptismo, com a nossa condição de baptizados.
Os cristãos, de certa forma, devem viver de uma maneira diferente dos não crentes, pois os seus horizontes são outros… Os não crentes vivem só no presente, de olhos postos apenas num horizonte terreno. Nós, os crentes, como filhos da luz e do dia, devemos estar vigilantes; devemos viver de olhos postos também no futuro, aguardando a vida plena e definitiva, que Deus nos promete e nos dará um dia.
Dar testemunho da esperança
Sabemos nós, enquanto crentes, dar testemunho deste outro sentido da vida e da esperança que brota da nossa fé? Ou limitamo-nos a alinhar com o coro geral de queixumes e lamentos pelo estado ou situação em que se encontra o nosso mundo?
Na situação de dúvidas, riscos e medos em que a sociedade actual está mergulhada – e estou consciente de quanto a vossa vida, neste país, vos faz sofrer e suportar muitos perigos e angústias! – dar testemunho da nossa esperança de cristãos é, certamente, um dos grandes desafios!
Quero, por isso, deixar aqui a minha palavra de encorajamento e a minha solidariedade com todos aqueles que, neste país, têm sofrido por causa da violência, inclusive da morte dos seus familiares ou amigos. Face à violência e ao crime, o cristão deve continuar a ser uma pessoa de esperança, não se deixando arrastar pela onda do desânimo, nem cruzando os braços diante da injustiça, mas procurando sempre que os valores do Evangelho se concretizem e penetrem, já em gérmen, na nossa terra.
Depositários dos dons de Deus
4. Eis-nos finalmente diante do Evangelho de hoje. Na passagem proclamada, São Mateus apresenta a chamada “parábola dos talentos”. Nela se conta que um senhor partiu para uma grande viagem e deixou a sua fortuna nas mãos dos seus servos. A um, deixou cinco talentos, a outro dois e a outro um. Quando voltou, chamou os servos e pediu-lhes contas da sua gestão. Os dois primeiros tinham investido a soma recebida e entregaram o dobro ao seu senhor; mas o terceiro tinha escondido cuidadosamente o talento que lhe fora confiado, pois conhecia a exigência daquele senhor e tinha medo. Os dois primeiros servos foram louvados, ao passo que o terceiro foi severamente criticado e condenado pelo seu senhor.
Nesta versão da parábola, o “senhor” é Jesus que, antes de deixar este mundo, entregou bens consideráveis aos seus “servos” (os discípulos). Os “bens” são os dons que Deus, através de Jesus, quis oferecer a todos os homens: a Sua Palavra, os valores do Evangelho, o amor ou serviço aos irmãos, a partilha, a misericórdia, a fraternidade… Enfim, todos os carismas e ministérios que ajudam a construir a comunidade…
Enquanto discípulos de Jesus, somos nós hoje os depositários desses “bens”. A questão, portanto, que todos nos devemos colocar, é esta: como temos utilizado estes “bens”? Temos feito com que dêem frutos, ou temo-los conservado cuidadosamente enterrados? Por medo, por comodismo, por desinteresse… pode acontecer que deixemos esses “bens” sem dar os frutos de que o mundo tanto precisa. A começar pela nossa própria família!
Construir um futuro melhor
Através desta parábola, São Mateus também nos exorta a estarmos alerta e vigilantes e a não nos demitirmos das nossas responsabilidades, aceitando passivamente que o mundo se construa de acordo com valores que não são os de Jesus… Se o fizéssemos, estaríamos a privar a nossa própria família, os colegas e os amigos, a Igreja e a Sociedade em geral dos dons ou “bens” a que têm direito.
Isso significa, irmãos e irmãs, que o discípulo de Jesus não pode viver distraído ou alheado dos problemas do mundo… Por muito forte que seja a tentação de fugirmos dos problemas que afligem a nossa sociedade, essa não pode nem deve ser a atitude do cristão!
Também para vós, emigrantes, é importante ter presente que a vida cristã exige uma atenção muito grande à situação do mundo; a fé não deve servir como analgésico ou anestesia que faz esquecer os problemas da vida! Pelo contrário, a Fé dá-nos força para enfrentar esses problemas!
Por isso, as esperanças e as dificuldades da pátria que vos acolheu – a realidade da vida social, política e económica deste grande país que é a África do Sul – devem fazer parte da vossa oração e da vossa esperança cristã, mas também do empenho concreto de todos e, particularmente, das novas gerações.
Jovens, procurai tomar nas vossas mãos o futuro deste país, que também é vosso! Não vos deixeis ficar de fora das suas dificuldades e problemas, mas empenhai-vos de alma e coração, para que esta pátria tenha um futuro mais justo e mais risonho! Gostaria, portanto, que os jovens portugueses na África do Sul se assumissem como continuadores da Fé e das Tradições religiosas e culturais que receberam dos seus antepassados, mas aceitassem também ser construtores activos, dedicados e generosos do futuro desta grande nação!
Uma palavra de gratidão
5. Irmãos e irmãs em Cristo, permiti que termine esta minha reflexão com uma palavra de gratidão. Antes de mais, um obrigado ao Senhor que nos concedeu a vida e a saúde para estarmos juntos hoje nesta celebração de acção de graças. A Ele, o Senhor da Vida, o nosso louvor e a nossa gratidão!
O nosso grato sentir estende-se também Àquela que Jesus nos deixou como nossa Mãe, aqui invocada como Senhora de Fátima. Que o seu olhar de ternura e a sua protecção materna derramem sobre todos nós e as nossas famílias as maiores bênçãos divinas!
Em terceiro lugar, gostaria de recordar e deixar aqui um agradecimento a todas as pessoas que ao longo destes 60 anos se dedicaram de alma e coração a esta comunidade: a todos os sacerdotes que por aqui passaram, desde o senhor padre Carlos Camacho, seu primeiro reitor, até ao senhor padre Carlos Gabriel, a quem saúdo com reconhecimento e estima; e a todos os homens e mulheres que deram muito de si, do seu tempo e também dos seus bens, para que se tornasse possível tão grandiosa obra. Muitos desses irmãos e irmãs já não se encontram no meio de nós; que o Senhor Deus os tenha na sua glória e os recompense!
Uma particular palavra de agradecimento e de estímulo a todos quantos se encontram empenhados nos movimentos, associações e diversos serviços que tornam mais viva esta Comunidade: aos Irmãos da Confraria do Santíssimo Sacramento, verdadeiro pilar da vida desta igreja, às Zeladoras e aos Associados do Sagrado Coração de Jesus, aos Ministros da Comunhão, às Catequistas, ao Grupo Coral, aos Jovens, aos Acólitos e às crianças, às pessoas que têm a seu cuidado o asseio e a ornamentação da igreja e a todos aqueles e aquelas que, de qualquer outra forma, mas sempre de maneira generosa e dedicada, contribuem para que esta igreja e esta comunidade sejam sempre e cada vez mais um espelho da amizade de Deus e um sinal da protecção da Virgem Santíssima.
Que Ela, nossa Mãe bondosa, aqui invocada como Senhora de Fátima, nos alcance de Deus todas as graças e as bênçãos do Céu!
Joanesburgo, 16 de Novembro de 2008
† António Carrilho, Bispo do Funchal