Discurso do presidente da CEP na abertura da Assembleia Plenária
O início de mais uma Assembleia Plenária da CEP significa a alegria do encontro fraterno e a co-responsabilidade serena na tarefa de edificar a Igreja. Fazemo-lo, como sempre, em comunhão com o Santo Padre, dando a esta Assembleia um timbre de mais profunda unidade pela passagem do primeiro aniversário de eleição e tomada de posse, saudando Sua Ex.cia Rev.ma o Senhor Núncio Apostólico a quem desejamos um completo restabelecimento da saúde.
Tendo ocorrido a 05 de Fevereiro o falecimento de D. David de Sousa, Arcebispo emérito de Évora, manifesto a comunhão com as Dioceses do Funchal (1957-1965) e de Évora (1965-1981), bem como à Família Franciscana, onde hauriu as virtudes da bondade zelosa, da humildade fraterna e da sábia simplicidade.
Esta Assembleia acontece poucos meses após a publicação da Carta Encíclica Deus Caritas Est. Como carta programática para o Pontificado de Bento XVI, é, para nós, uma Encíclica com prementes orientações e compromissos pastorais. A sua dinâmica e conteúdos envolvem-nos em tarefas diversificadas. Redescobrir Deus como Amor permanece a finalidade da transmissão da fé; identificar esse amor na vida dos cristãos e das comunidades exige fidelidade doutrinal; testemunhá-lo é a originalidade do nosso compromisso cristão.
1 – A acção social da Igreja como reveladora do “Amor de Deus”
O Santo Padre compromete a Igreja num permanente serviço da caridade como o melhor anúncio e manifestação de Deus. Daí que, sempre radicados no amor e porque Deus nos amou primeiro, o amor do próximo é um dever para todos e cada um dos fieis e a comunidade cristã terá de o assumir como “definição da Igreja”. O amor é constitutivo da Igreja e nunca mera opção.
Para além disto, é-nos recordado que “o amor tem necessidade de organização enquanto pressuposto para um serviço comunitário ordenado”. Sabemos que são variadíssimas as manifestações do serviço caritativo da Igreja que desempenham um trabalho estruturante na sociedade portuguesa. Muitos não as querem ver e só olham para elas quando surgem pequenos ou grandes problemas. A sua ausência colocaria muitas pessoas à margem da vida e sabemos que a nossa vocação é encarar os dramas humanos por mais graves que eles sejam. Aí estamos na opção preferencial, em nome de Cristo e continuando a Sua missão, de cuidar de todos e, particularmente, dos mais pobres. Nunca deixaremos de prestar este serviço. Estaríamos a trair a nossa razão de ser.
Iguais a todas as outras, as nossas instituições têm uma matriz peculiar, não em termos de privilégios ou de falta de pessoal com competência técnica e devidamente habilitado. Assumimos as exigências legais mas queremos ser capazes de fazer com que a nossa “actividade caritativa mantenha todo o seu esplendor e não se dissolva na organização assistencial comum, tornando-se uma simples variante da mesma” (D.C.E. 31). “A competência profissional é uma primeira e fundamental necessidade, mas por si só não basta. É que se trata de seres humanos, e estes necessitam de humanidade, precisam da atenção do coração” (D. C. E. 31).
Talvez seja chegada a hora de, com serenidade e responsabilidade social e eclesial, nos debruçarmos sobre o perfil das nossas instituições, sem esquecer os “Princípios e Orientações da Acção Social e Caritativa da Igreja” que publicamos em 7 de Abril de 2005, para que cresçam na fidelidade às exigências estatutárias ultrapassando-as através da “formação do coração” de todos os agentes, de maneira que aí resplandeça, duma maneira inequívoca e sem complexos, o amor de Cristo pela humanidade. Sendo iguais, não podemos perder a nossa originalidade e diferença.
2 – O dom da vida a propor e defender
Trabalhar a visibilidade de Deus como Amor passa pela inevitável atenção à vida, como Seu primeiro dom.
Olhando para a tradição bíblica encontramos Deus como “O Vivente” (Dt. 5, 26; Is. 37, 4; Sal.84,3) e, dum modo inconfundível, como “o amante da vida” (Sab. 11,26). Mais ainda, Jesus Cristo assume-se como a “Vida” (cf. Jo. 14,6), e veio para que “todos tenham a vida e a tenham em abundância” (Jo 10, 10).
Este amor de Deus por cada vida suscita na missão da Igreja uma particular responsabilidade. A actualidade proporciona-nos um esquema de conhecimentos científicos, assim como eficazes instrumentos técnicos de promoção e defesa que permitem uma regulamentação jurídica precisa e norteada pela ética e valor inviolável da vida. Mas que presenciamos? “O valor da vida sofre hoje uma espécie de “eclipse” apesar da consciência não cessar de o apontar como valor sagrado e intocável; e comprova-o o próprio fenómeno de se procurar encobrir alguns crimes contra a vida nascente ou terminal com expressões de âmbito terapêutico, que desviam o olhar do facto de estar em jogo o direito à existência de uma pessoa humana concreta” (E. V. 11).
Sabemos que estamos “perante um combate gigantesco e dramático entre o mal e o bem, a morte e a vida”, a “cultura da morte” e a “cultura da vida”. Encontramo-nos não só “diante”, mas necessariamente “no meio” de tal conflito: todos estamos implicados e tomamos parte nele, com a responsabilidade iniludível de decidir incondicionalmente a favor da vida (cf. E. V. 28).
A voz e as opções da Igreja serão sempre claras. Fazemo-lo por razões religiosas, sem dúvida, mas temos a consciência de trabalhar por motivações humanitárias. Nem todos quererão concordar connosco. A liberdade concede-nos o direito de agir e de denunciar ordenamentos jurídicos que desrespeitam este valor perene.
Gostaria de referir dois aspectos.
Em primeiro lugar, actualmente as maravilhas do desenvolvimento da tecnologia informática e da engenharia genética podem proporcionar uma alienação do ser humano perante a força da máquina que as produziu. A ciência perante os valores pode, também e em alguns casos, ser desprestigiante para o ser humano.
Por outro lado, presenciamos uma acentuada caminhada para a mercantilização da vida, o que significa, entre outras coisas, o comércio de órgãos, a manipulação e destruição de vidas humanas. Por isso, não podemos ignorar o comércio infame de que certas operações se podem revestir. Assim, diante da vida que nasce e da vida que morre, o ser humano já não é capaz de se deixar interrogar sobre o sentido mais autêntico da sua existência, assumindo com verdadeira liberdade estes momentos cruciais do próprio “ser”. Preocupa-se somente com “o fazer” e, recorrendo a qualquer forma de tecnologia, moureja a programar, controlar e dominar o nascimento e a morte. Estes acontecimentos, em vez de experiências primordiais que requerem ser “vividas”, tornam-se coisas que se pretende simplesmente “possuir” ou “rejeitar” (cf. E. V. 22).
A vida nasce da vida e é sempre dom
Como tal, a vida encerra uma dimensão de eterno que exige de todos, políticos ou não, uma séria meditação sobre tão grande mistério humano e transcendente. Toca a todos reconhecer e testemunhar este valor infinito nunca se deixando conduzir por conceitos subtis e apelidados de modernos, mostrando, sempre, uma consciência responsável. Aos políticos, particularmente aos católicos, compete a ousadia da diferença para que, em sede legislativa, assumam este direito inviolável como fundamento de todos os outros direitos. Dos profissionais da saúde espera-se a serenidade de objectar em consciência para que a cultura da vida floresça nos estabelecimentos hospitalares.
O grande filósofo Henri Bergson reconhecia que o desenvolvimento técnico iria fornecer à humanidade extraordinárias possibilidades que poderiam constituir-se num perigo trágico. Dizia, por isso, que era necessário um suplemento de alma que se colocasse ao serviço da vida infundindo nela uma qualidade que chamava mística. O mundo tem de se tornar não uma monstruosa máquina que devora a vida mas um lugar de graça que gera para a vida plena, a vida que tem sabor de eterno.
3 – A iniciação cristã como acolhimento do amor
O anúncio de Deus Amor, através duma atenção à vida, concentra-nos no essencial da missão da Igreja: transmitir a fé. Acompanha-nos o projecto de suscitar cristãos adultos, convictos das suas razões. Toca-nos manifestar a fé, tornando-a uma experiência de relação pessoal com a Verdade, nutrida por atitudes de escuta e diálogo com um Deus Vivo. Mas, que densidade de fé manifestam os nossos cristãos? Que Deus transmitimos e como o fazemos?
Permitam a citação, talvez longa, dum ateu. É paradigmática. “Que aquele que não acredita em Deus não queira falar do tema – o ateísmo militante anda por baixo – é fácil de entender e só deveria preocupar o crente, que se vê agora confrontado com um inimigo mais subtil, a indiferença. O que deveria ser para ele ainda mais inquietante é que o crente guarda para si a ideia que tem de Deus. Pelo menos é o que a minha experiência diz, e isto sim, chama-me a atenção. Em relação a alguns colegas, com os quais até trabalhei em questões teóricas, levei anos até saber que eram crentes – não se notava no seu discurso nem no seu comportamento. E em relação aos que sabia que eram, quando tentei solicitar a ideia que tinham de Deus, sem negarem a sua fé, evitaram sempre irem ao fundo da questão” (Deus e a Fé, Ignácio Sotelo, p.80). “A Deus entrevejo-o unicamente na fé do crente, fé que para mim é inexplicável, mas alguns dos seus efeitos não deixam de causar-me espanto. De algum modo, Deus existe, digo para mim próprio, enquanto houver quem acredite nele. Tenho de aceitar uma crença que transforma algumas pessoas completamente, transformação que não deixa de inquietar-me” (Deus e a Fé, Ignácio Sotelo, p. 95).
A necessidade de gerar cristãos adultos é serviço que requer o recurso ao estilo catecumenal próprio da iniciação cristã. A particular atenção aos não baptizados não permite negligenciar a urgente transmissão da fé aos já baptizados em situação de procura de inserção renovada nas comunidades cristãs.
A maneira de evangelizar terá de mudar. Continuamos a usar a linguagem de séculos e não verificamos que a Igreja começa a “ficar muda” pois está a usar uma “linguagem morta para falar dum Deus Vivo”. Só uma vida evangelizada falará de Deus.
Em jeito de síntese da agenda desta Assembleia, deixo as palavras dirigidas, pelo Santo Padre, aos Sacerdotes de Roma, em três de Março de 2006: “Um mundo vazio de Deus, que esqueceu a Deus, perde a vida e cai numa cultura de morte”. Não é isto que esta a acontecer? Experimentamos o entusiasmo provocado pela passagem das Relíquias de Santa Teresa e alegramo-nos com a próxima beatificação da Irmã Rita Amada de Deus; sabemos, por isso, que só a santidade manifesta Deus e, nesta convicção iremos discernir caminhos para que Ele regresse ao coração e opções dos crentes para que o mundo creia.
+ Jorge Ferreira da Costa Ortiga, Arcebispo Primaz e Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa