Catequese Quaresmal do Cardeal Patriarca no 1º Domingo da Quaresma - 2004.
Introdução
1. O dever de anunciar a fé é dinamismo constitutivo da natureza da Igreja. Cada crente, que fez, na sua união a Jesus Cristo, a experiência libertadora da salvação, sente-se impelido, por uma força interior, a anunciar a outros essa experiência como uma boa-nova de vida. A palavra “Evangelho” significa isso mesmo: uma “boa-nova” para todos os que buscam a vida. Evangelizar é proclamar essa “boa-nova”.
O primeiro a revelar uma consciência viva do destino universal da “boa-nova” da salvação, foi o próprio Jesus Cristo. Abraçar a humanidade num acto de amor redentor, expressão do amor com que Deus ama todos os homens, foi a experiência mais profunda de Jesus Cristo. A urgência da proclamação do amor de Deus pelos homens, brota do Seu coração e do sentido que deu à Sua vida, oferecendo-a pela humanidade. Ao oferecer a Sua vida no altar da cruz, Cristo sabe que a Sua morte é um ponto de viragem para toda a humanidade. Levar essa notícia a todos os homens e introduzi-los no dinamismo da salvação, decorre da dimensão universal da vida e morte de Jesus Cristo. Ele sabe que, na Sua morte e ressurreição, uma nova luz da esperança brilha para toda a humanidade. A exigência de dar a conhecer essa luz é expressa pelo próprio Jesus na pregação do Reino. Aos discípulos Ele diz: “Vós sois a luz do mundo… Não se acende uma lâmpada para a colocar debaixo do alqueire, mas no lampadário onde possa iluminar todos os que estão em casa” (Mt. 5, 14-15).
Este dinamismo universal da salvação constitui o último testamento de Jesus aos discípulos, já depois da ressurreição, manifestação da Sua Senhoria e do Seu poder salvador: “Todo o poder me foi dado no céu e na terra. Ide, pois, e de todas as nações fazei discípulos, baptizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mt. 28, 18-19).
O Livro dos Actos dos Apóstolos, referindo-se às últimas aparições do ressuscitado, antes da Ascensão, põe na boca de Jesus as seguintes palavras: “Recebereis uma força, a do Espírito Santo que descerá sobre vós. Então sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria e até aos confins da terra” (Act. 1,8).
A urgência da evangelização é, assim, um dinamismo constitutivo da missão da Igreja. O testemunho do Apóstolo Paulo confirma-nos essa exigência: “Com efeito, pregar o Evangelho não é, para mim, um título de glória; é uma necessidade que eu sinto. Sim, ai de mim se não pregar o Evangelho” (1Co. 9,16).
Esta urgência, este dever, são, ainda hoje, parte integrante e essencial da missão da Igreja. É a urgência da “nova evangelização”, de que nos fala João Paulo II. Nas nossas sociedades secularizadas deste nosso Ocidente que alguns já apelidam, com alguma precipitação, de “post-cristão”, sobretudo nas grandes cidades onde as referências cristãs se diluem progressivamente, é urgente anunciar o Evangelho de Jesus Cristo. É esse o desafio que aceitámos, ao organizar em Lisboa uma das sessões do “Congresso Internacional da Nova Evangelização”, acompanhado de uma missão na cidade. Perante a urgência da evangelização das nossas sociedades, colocam-se-nos de novo, com a acuidade do momento presente, perguntas velhas de dois mil anos: Quem poderá ser enviado a evangelizar? Qual o conteúdo da sua mensagem? Como fazê-lo de modo a que a boa-nova de Jesus Cristo volte a surpreender os homens e mulheres, nossos irmãos? Todos somos chamados, nos próximos meses, a encontrar respostas para essas questões. Nós sabemos que enviada a evangelizar só a Igreja o é e que o essencial da mensagem é o mesmo desde os Apóstolos, acerca de Jesus morto e ressuscitado e do Espírito Santo que nos dá. Mas a Igreja só será enviada se os seus membros, sacerdotes, religiosos e leigos, o puderem ser com a qualidade interpelante de testemunhas da fé. E as testemunhas não se inventam. Uma Igreja que não possa ser enviada, sempre de novo, com a ousadia das testemunhas, ficará limitada a administrar o que resta de uma tradição crente.
Evangelizar é testemunhar
2. A urgência da evangelização radica na profundidade da experiência pessoal de encontro com Jesus Cristo. Anunciá-Lo é dar testemunho de uma experiência vivida. A experiência de Paulo é, entre todas, a mais expressiva. O encontro com Cristo ressuscitado, na estrada de Damasco, fundamenta o seu ardor apostólico. Ele próprio nos conta esse momento: “Quem és tu, Senhor?” O Senhor disse: “Eu sou Jesus, que tu persegues. Mas levanta-te e mantém-te de pé. Eis a razão porque te apareci: para te estabelecer como servo e testemunha da visão em que acabas de Me ver e de outras em que Me mostrarei a ti” (Act. 26, 15-16). E no início da Carta aos Gálatas recorda: “Mas quando Aquele que desde o seio materno me pôs à parte e me chamou pela Sua graça, se dignou revelar em mim o Seu Filho para que O anuncie entre os pagãos” (Gal. 1, 15-16).
Testemunhar é comunicar uma experiência. Só pode anunciar Jesus Cristo, quem experimentou segui-Lo e identificar-se com Ele, na sua vida de ressuscitado. A graça do apostolado brota da graça da fé, enquanto experiência de comunhão com o Senhor. A autoridade da testemunha é a experiência; dela brota a firmeza da sua convicção. Esse é um dado comum a todas as civilizações; as testemunhas sempre foram aceites como prova da verdade. No Antigo Testamento, para os assuntos mais graves, exigia-se a concordância de três testemunhos. Lê-se no Livro do Deutoronómio: “Uma única testemunha não é suficiente para convencer um homem de uma qualquer falta. Seja qual for o delito, é a partir de duas ou três testemunhas que a causa se estabelecerá” (Dt. 19,15). Esta prática dos vários testemunhos concordes está ainda presente no Novo Testamento. Jesus para credenciar a sua pregação junto dos fariseus reconhece: “Se Eu dou testemunho de Mim mesmo, o meu testemunho não vale” (Jo. 5,31). E apresenta três testemunhos concordantes que o impõem como verdadeiro: o testemunho de João Baptista (cf. Jo. 5,32-33), o testemunho das obras que Deus Pai lhe permite realizar (Jo. 5,36) e o testemunho do próprio Pai (Jo. 5,37).
É esta força dos testemunhos concordantes que reforçam a credibilidade do testemunho da Igreja. A evangelização não é o testemunho individual de uma convicção pessoal; é o testemunho de uma comunidade crente, porque é na profundidade do seu “eu colectivo” que ecoa o próprio testemunho de Deus. A credibilidade do testemunho da Igreja vem-lhe da sua identificação com Cristo, que é a “testemunha fiel, o primogénito de entre os mortos, o Príncipe dos reis da terra” (Apc. 1,5). A Igreja não conhece Jesus Cristo só por ouvir dizer. Entre ela e Cristo há uma identificação ao nível do ser. Para a Igreja anunciar Jesus Cristo é proclamar a sua identidade profunda. Na sua intimidade com Cristo, a Igreja acolhe continuamente o Seu testemunho. Porque Ele é a “testemunha fiel”, o testemunho da Igreja é credível. A aceitação desse testemunho é a fé, início da experiência de amor pessoal a Jesus Cristo. A maneira como o Senhor se nos dá, na fé, confirma o testemunho da Igreja. É essa força da união a Jesus Cristo que o Apóstolo Paulo contempla na Igreja de Corinto: “Em Jesus Cristo vós fostes cumulados de todas as riquezas, as da palavra e da ciência, devido à firmeza que adquiriu em vós o testemunho de Cristo” (1Co. 1,5-6).
O testemunho da Igreja Apostólica
3. O testemunho dos Apóstolos é constitutivo da própria Igreja. É a autenticidade do seu testemunho acerca da ressurreição de Jesus que dá origem à Igreja como realidade pascal. E da ressurreição eles são verdadeiramente testemunhas, viram e experimentaram o Senhor morto e ressuscitado. São João não se cansa de o afirmar: “foi este discípulo que dá testemunho destes factos e que os escreveu e nós sabemos que o seu testemunho é verdadeiro” (Jo. 21,24). Já a propósito do coração de Cristo trespassado pela lança do soldado, donde saiu sangue e água, João afirma: “aquele que viu dá testemunho, um testemunho autêntico e verdadeiro, para que vós acrediteis também” (Jo, 19,35).
Ser testemunha da ressurreição é condição para se ser apóstolo. Quando se trata da escolha de Matias para ocupar o lugar de Judas, o critério é esse: alguém que tenha, com eles, feito todo o percurso da vida pública de Jesus e “que se torne, connosco, testemunha da Sua ressurreição” (Act. 1,22).
Esse é também o fundamento do apostolado de Paulo. É porque o próprio Cristo ressuscitado lhe aparece na estrada de Damasco, que Paulo poderá ser sua testemunha. É o que lhe diz Ananias: “O Deus de nossos pais predestinou-te para conheceres a Sua vontade, veres o justo e escutar a voz saída da Sua boca, porque tu deves ser, para Ele, testemunha diante de todos os homens, do que viste e ouviste” (Act. 22,14-15). O próprio Senhor lhe promete que aquela visão será apenas o início de uma longa intimidade prometida e querida por Jesus (cf. Act. 26,15-16).
A fé das comunidades enraíza directamente no testemunho sincero que Paulo dá, incansavelmente, deste encontro com Jesus Cristo. Relaciona a fé dos Tessalonissenses, uma fé que lhes dá acesso à esperança da vida eterna, com a aceitação do seu testemunho de apóstolo (cf. 2Tess. 1,10). Toda a pregação dos apóstolos é um testemunho comovente do seu encontro com Jesus ressuscitado.
Esta relação do testemunho dos apóstolos com a fé dos crentes, mostra que o testemunho é mais do que uma informação pessoal. É feito já no dinamismo do mistério da fé, ganha a força do testemunho do próprio Cristo e é dotado da eficácia sacramental de toda a Palavra de Deus, proporcionando àqueles que O acolhem a experiência que anuncia. O Apocalipse define os cristãos como aqueles “que obedecem à ordens de Deus e possuem o testemunho de Jesus” (Apc. 12,17). Porque esse testemunho de Jesus é o espírito de profecia (cf. Apc. 19,10), aqueles que O acolhem tornam-se profetas e apóstolos e podem, com o seu testemunho, comunicar a outros a fé, que os levará à intimidade com Jesus Cristo.
A perenidade do testemunho e o crescimento da Igreja
4. Esta cadeia ininterrupta de testemunhos, que actualiza em cada tempo a possibilidade do encontro com Jesus Cristo, dá densidade à história da Igreja, fazendo de toda ela uma tradição viva, que tem, em si mesma, a força de um testemunho. Ao longo dos séculos foram permanentes e autênticos os testemunhos de fé em Jesus Cristo. Multidões de Mártires fizeram-no com o seu sangue, forma mais radical de testemunhar a fidelidade a Jesus Cristo. Outros percorreram o mundo a anunciar; outros, na busca persistente da verdade, aprofundaram esse tesouro inesgotável, exprimiram-no nas diversas culturas e tornaram-no cultura. Hoje e em cada tempo o testemunho de fé dos cristãos é indesligável desse testemunho da Igreja; ele é, apenas, a expressão desse testemunho de todo um povo crente, a fé da Igreja manifestada ao longo dos séculos e em tantas circunstâncias. Se o testemunho de cada um de nós não for a expressão da fé da Igreja, ele torna-se insignificante, incapaz de comunicar a fé.
Povo de testemunhas e mistério de comunhão
5. O facto de a fé se comunicar por testemunho tem a ver com a Igreja como experiência de comunhão. Acreditar no testemunho de alguém significa confiar, abandonar-se à verdade do outro. A fé estabelece, assim, um laço profundo entre a testemunha e aquele que acredita no testemunho. Acreditando, cada crente participa na vida que o outro lhe comunicou; ao acreditar, entramos em comunhão. Como essa vida partilhada é a própria vida de Jesus Cristo, é n’Ele que nos encontramos em comunhão e Ele, a “testemunha fiel”, introduz-nos na comunhão trinitária. Esse é, aliás, o seu grande testemunho: Eu e o Pai somos um.
Quando, através do nosso testemunho, semeamos a fé noutras pessoas, adquirimos outros caminheiros, nesse caminho interminável de seguimento de Jesus Cristo. Assim vai aumentando a Igreja como povo que caminha e se identifica, progressivamente, com o seu Senhor. E nessa peregrinação descobrimos que o testemunho não está, apenas, no início da fé. Ao estreitarmos os laços de comunhão como povo crente, cada um fortalece os seus irmãos com o testemunho contínuo da sua fé, quando celebra, quando reza, quando anuncia, quando ama os irmãos, quando vive toda a vida na fidelidade à verdade. É a fé da Igreja que nos sustenta na caminhada.
Todos chamados a testemunhar a fé
6. A Igreja de Lisboa está em ambiente de “nova evangelização”. Espera-se dela, como comunidade crente e de cada um dos cristãos, a simplicidade e ousadia do testemunho. E isso supõe uma experiência pessoal de fé, que faz da nossa relação com Jesus Cristo a mais preciosa realidade da nossa vida. Jesus comparou o Reino dos Céus a um tesouro escondido, que queremos possuir a todo o custo (cf. Mt. 13,44-45). Se Jesus Cristo não é, para nós, esse “tesouro escondido”, essa “pedra preciosa”, dificilmente o nosso discurso acerca d’Ele tem a força de um testemunho.
Ao testemunharmos a própria fé, introduzimos no nosso diálogo com os outros o que de mais profundo e íntimo a nossa vida tem. Fazemo-lo com a simplicidade do amor e com a ousadia das grandes certezas. O próprio Jesus afirmou: “quem se declarar por Mim diante dos homens, Eu me declararei a favor dele diante de Meu Pai que está nos Céus” (Mt. 10,32). O testemunho é um preito de gratidão em relação a Jesus Cristo, que falará de nós ao Pai. Testemunhar a fé tem sempre a densidade da relação trinitária.
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca