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Um Ministério para a Eucaristia

D. José Policarpo
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Homilia de D. José Policarpo na Solenidade do Corpo de Deus

1. A Liturgia convida hoje a Igreja a prostrar-se diante do mistério da Eucaristia. Fá-lo depois de ter celebrado a Páscoa e o Pentecostes, pois a Eucaristia é, na Igreja, o testemunho de que Jesus Cristo ressuscitado continua vivo, no meio do seu Povo, pela força do Espírito de Deus. O Evangelho de São Marcos lembra-nos que a Eucaristia é o sacramento da Páscoa, isto é, da morte e ressurreição de Jesus Cristo, que o Espírito Santo actualiza na Igreja, em memória de Jesus. Sabemos que esta festa litúrgica do Corpo e Sangue de Cristo é tardia, pois data do século XIII. Mas há complementaridade e não simples repetição em relação à evocação da Eucaristia, na memória da Ceia do Senhor, com que abre a celebração do tríduo pascal. Na Ceia evocamos os acontecimentos históricos da morte de Jesus, celebrados em dois momentos: a sua celebração incruenta, em ambiente de grande comunhão de amor, na ceia pascal e a sua concretização cruenta, no sacrifício do Calvário. A ceia pascal não é a primeira celebração do sacramento da Eucaristia; é apenas o seu anúncio como vivência sacramental da paixão: “Fazei isto em Minha memória”. Os sacramentos são expressões post-pascais, realizam a salvação, em memória de Jesus, pela força do Espírito. Nesta festa é a Eucaristia, enquanto sacramento da Igreja, que está em relevo. A Igreja rejubila com este dom da presença de Cristo ressuscitado, oferecendo-Se sempre de novo e continuando vivo na Igreja, como seu Senhor. É a festa do encontro amoroso, das núpcias de Deus com o seu Povo celebradas sempre de novo. Nela, a Igreja sente ao vivo que Cristo se lhe entrega, amando-a como uma esposa e a atrai, com o Seu amor, convidando-a a revestir-se de luz e de graça, na obediência da fidelidade, para ser a esposa pura e imaculada. A Carta aos Hebreus, que acabámos de escutar, revela-nos que a Eucaristia, como festa da Igreja, é participação na liturgia celeste, júbilo eterno de uma humanidade renovada, que unida ao seu Bom Pastor, na humanidade glorificada de Jesus, participa na glória eterna da Santíssima Trindade. Na Eucaristia, aprendemos e experimentamos que os verdadeiros motivos da nossa alegria estão no Céu e não na terra; a nossa festa é a festa das núpcias do Cordeiro, a celebração da Sua glória eterna. 2. Neste ano, em que a Igreja de Lisboa quis celebrar, comigo, 25 anos de ministério episcopal, sinto que a evocação da minha vida e do meu ministério se faz, inevitavelmente, em relação à Eucaristia. E digo da minha vida e do meu ministério, porque desde a ordenação sacerdotal sinto que não há separação entre ambos. O ministério sacerdotal não é apenas um aspecto da minha vida; ele exige-a, absorve-a, define-a, marca-lhe o ritmo. E porque a presidência da Eucaristia é a experiência que define a essência do ministério sacerdotal, toda a vida se define a partir da Eucaristia. A Eucaristia me alimentou, me ensinou a amar e a servir, deu contornos de exigência e de radicalidade à minha união a Jesus Cristo e à Igreja; sinto, por isso, que a Eucaristia me julgará. Olhando para trás, naquela retrospectiva que nos permite saborear os dons de Deus, toda a memória me conduz à Eucaristia: à alegria da primeira comunhão, memória que não mais se apagou no meu coração, encontro de amor de um coração puro de criança, com a pureza absoluta do amor de Cristo. Talvez date desse dia a primeira notícia de uma escolha e de um chamamento. E o esforço feito para manter, mesmo durante as férias, a graça da comunhão diária, percorrendo, para isso, alguns quilómetros a pé? Não era, nessa altura, liturgicamente, muito perfeita, a minha devoção, pois o que me motivava nesse esforço era a comunhão e não tanto a Eucaristia celebração. Mas se eu tinha sido habituado a ver o Pároco distribuir, ao Domingo, a sagrada comunhão meia hora antes da celebração, para que a missa não demorasse tanto! Estávamos antes da reforma litúrgica e a mim, como a muitos jovens da minha geração, o que nos motivava, na nossa fidelidade, era esse encontro diário com Jesus, na Eucaristia. Mas esse amor à união com Jesus Cristo, levou-nos facilmente à descoberta da celebração sacramental, onde Ele acontece e se nos dá, como Aquele que Se oferece continuamente, a nós e por nós. Considero que a minha vocação sacerdotal se esclareceu e aprofundou no mistério da Eucaristia. Hoje não tenho dúvidas; foi aí, nesse encontro vivo com Cristo, que Ele me atraiu e me chamou. Celebrar missa foi a primeira atracção de uma vocação. E quando as dúvidas surgiram, atingindo simultaneamente a fé e a vocação, foi diante de Jesus, presente na Eucaristia que a luz voltou a brilhar. Foram longas horas, densas e dramáticas, em que pedi a Jesus, ali presente segundo a fé da Igreja, porque a minha parecia em crise, que se manifestasse e me guiasse. Hoje estou convencido que a Eucaristia, celebrada e adorada, é a fonte de todas as vocações, porque é Jesus vivo que chama e atrai. E interrogo-me se a falta de vocações na Igreja não significa, afinal, a falta de amor eucarístico. Quem não encontra Cristo vivo, não pode amá-Lo a ponto de lhe entregar a sua vida. Só o amor à Eucaristia nos permite penetrar no mistério do sacerdócio ministerial: ser a presença sacramental de Jesus Sacerdote, através da qual Ele congrega a sua Igreja para oferecer a Deus o sacrifício que redime e põe a Igreja em contacto com o Céu. Como Bispo, Sucessor dos Apóstolos, com a plenitude dos poderes sacerdotais de Jesus Cristo, a minha principal missão é congregar a Igreja para celebrar a Eucaristia. Para isso tenho de anunciar o Evangelho, aprofundar a fé, consolidar a caridade. Mas tudo isso são etapas prévias do caminho para a Eucaristia. À volta do Bispo, que congrega para a Eucaristia, gera-se continuamente a Igreja particular de que Ele é Pastor, como afirma o Concílio Vaticano II: “uma Diocese é uma porção do Povo de Deus confiada a um Bispo para que, com a ajuda do Presbitério, seja o seu Pastor. Assim, a Diocese, unida ao seu Pastor e reunida pelo Espírito Santo, graças ao Evangelho e à Eucaristia, constitui uma Igreja particular, na qual está viva e actuante a Igreja de Cristo, Una, Santa, Católica e Apostólica” (Christus Dominus, n. 11). Realmente a Eucaristia é a razão de ser do nosso ministério. Anunciamos a fé, dinamizamos a missão, suscitamos o amor e a comunhão, para podermos ter a alegria de presidir a uma comunidade que celebra e vive da Eucaristia. 3. Finalmente gostava de vos testemunhar como a Eucaristia é a fonte de toda a exigência moral e a motivação da nossa busca da santidade. Quem ama a Eucaristia não precisa de outras motivações morais, pois é por causa dela, para sermos dignos dela, que se afirma a nossa delicadeza de consciência; viver para ser digno da Eucaristia é uma razão suficiente para construir um coração puro. Se para habitar no seio de Maria, Deus lhe criou um coração imaculado, como não há-de desejar o mesmo para aqueles onde Ele vem habitar. Só que em nós a construção de um coração puro é uma vitória sobre a fragilidade e sobre o pecado. Se a Eucaristia é a nossa força, é também ela que denuncia o pecado em nós. Celebramo-la e recebemo-la sempre, pedindo perdão e ajuda. Cada encontro com a Eucaristia é a renovação do nosso desejo de conversão, para sermos cada vez mais dignos de oferecer, com Cristo, o sacrifício que só Ele pode oferecer, e sermos menos indignos da união de amor que, misericordiosamente, realiza connosco. A Eucaristia é sempre, para nós, o momento da misericórdia. Agradecer a Deus 25 anos de Episcopado é agradecer-lhe a Eucaristia que Ele me manda celebrar, para alimento do Povo a quem me enviou como Pastor; é agradecer-Lhe a Eucaristia que me alimenta, onde Ele continua a revelar-me o Seu desígnio e o Seu amor; é pedir-Lhe perdão por não ter ainda aquela pureza de coração que esse mistério exige, de não O ter adorado mais, de não Lhe ter dado a prioridade absoluta na ocupação do meu tempo. É manifestar-Lhe, mais uma vez, o meu desejo de fazer da Eucaristia o centro do meu ministério e de conduzir, cada vez mais, a Igreja a que presido, a viver da Eucaristia. † JOSÉ, Cardeal-Patriarca


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