Homilia de D. José Policarpo na Missa de Abertura do Ano Judicial
1. É com alegria que vos acolho nesta Sé Catedral a vós, membros das diversas Magistraturas, Advogados e outros trabalhadores judiciais que, porque sois crentes, vos reunis para celebrar os mistérios da nossa fé e implorar a bênção divina, no início de mais um Ano Judicial. Reunis-vos aqui, na vossa qualidade de membros da Igreja, que vos acolhe na sua casa mãe; mas o vosso gesto sublinha uma dimensão fundamental da existência cristã, que é a exigência da fé como elemento inspirador do sentido da participação de cada cristão na construção da cidade dos homens. Ser cristão tem consequências na maneira de se ser homem e cidadão. A vossa presença aqui sugere-nos uma meditação sobre as relações entre a fé cristã e a construção da Justiça.
Como é habitual na Liturgia, a primeira sugestão para essa meditação é-nos dada pela Sagrada Escritura, que nós escutámos como Palavra de Deus. Na primeira leitura, o Rei Saul é julgado pelo Profeta Samuel. Tinha-lhe sido dirigida uma palavra para que ele repusesse a justiça dos direitos do seu povo e o fizesse com a gratuidade e isenção, exigidas pela santidade do Deus a quem obedecia. Mas ele caiu na tentação, comum aos guerreiros daquele tempo, de fazerem da pilhagem dos despojos de guerra a razão de ser da própria guerra. A pureza dos motivos da acção constituem os verdadeiros critérios da justiça, lembrando-nos que a injustiça começa sempre no coração do homem.
A leitura do Evangelho lembra-nos a prioridade da pessoa humana, na sua dignidade, sobre as leis, que encontram o seu sentido como pedagogia para a realização da pessoa humana, individual e comunitariamente. O encontro com Cristo aparece, aí, como a plenitude da realização humana e o jejum legal era apenas um caminho para essa plenitude. Porque haviam os discípulos de jejuar se tinham encontrado o Esposo? Esta prioridade da pessoa humana, na dignidade do seu destino eterno, sobre as leis, inspirará, ao longo dos séculos, toda a verdadeira busca da justiça.
Os textos da Sagrada Escritura situam-nos num contexto de fé, em que a verdade de Deus, que Ele nos comunica pela Sua Palavra, inspira a própria justiça. Nos tempos modernos a afirmação da laicidade dos Estados – que rigorosamente significa apenas a não confessionalidade dos Estados – acarretou a laicidade da sociedade e da cultura e esta tem-se mostrado incapaz de afirmar a síntese entre os valores transcendentes, próprios da fé, e a imanência das realidades terrestres, no seio das quais se situa a justiça. Mas a profundidade do mistério do homem faz com que não possa haver caminhos verdadeiros de justiça sem abertura à transcendência. Não exigimos uma “justiça religiosa”, como ainda acontece noutros horizontes culturais da humanidade; mas acreditamos que a fé dos crentes, em diálogo sincero com todos, pode contribuir para o burilar contínuo de uma verdadeira cultura da justiça, que deve ser aberta à transcendência do homem e às exigências inultrapassáveis da dignidade humana.
2. A primeira pedra deste edifício de uma cultura da justiça é a consciência de que a justiça é a síntese harmónica de todos os valores espirituais e morais, que tecem a identidade de uma comunidade. Numa sociedade que abdica progressivamente de valores, onde a generosidade e o ideal dão lugar a todas as formas de egoísmo, onde não se aprofunda uma cultura da vida, onde não se inculca a prioridade do bem comum sobre os interesses individuais, onde os fins justificam cada vez mais os meios, caindo numa visão pragmática da verdade, é difícil construir a justiça. O direito tem de ser a proposta e o cultivo contínuo desses valores, assumindo uma função estruturante na harmonia da comunidade. Na construção de uma cultura de justiça, têm de participar todas as forças vivas da Nação, as famílias, as escolas, as Igrejas, as estruturas democráticas e os órgãos de poder. Não é cedendo na qualidade do que se propõe, que se pode exigir qualidade no juízo que se faz das pessoas e das instituições. As sociedades contemporâneas, plurais e democráticas, não podem ser, apenas, sociedades à defesa. A necessária vigilância sobre as forças que ameaçam a harmonia da sociedade e a dignidade das pessoas, tem de ser continuamente acompanhada pela proposta dos valores estruturantes de uma sociedade justa e pacífica.
Uma cultura da justiça tem de ser, antes de mais, uma cultura da verdade. Só assim ela estará à altura da dignidade da pessoa humana. A mentira é uma das grandes ameaças das sociedades contemporâneas. E quem usa a mentira para conseguir os seus intentos sabe que da mentira, mesmo quando desmentida, algo fica a germinar, desorientando e criando insegurança e instabilidade. Procurar a justiça é procurar a verdade, defender a verdade, pois só assim se defendem as pessoas e se constrói a harmonia da comunidade.
Nós os crentes sabemos que a fé é uma inquietação pela verdade, uma busca contínua da verdade; nós sabemos que a nossa busca da verdade precisa de ser continuamente interpelada pela luz da verdade absoluta que nos vem de Deus; Ele é a verdade. É impossível acreditar em Jesus Cristo e não identificar n’Ele a fonte última da verdade.
Uma cultura da verdade é, necessariamente, marcada pelo cultivo da dignidade da pessoa humana, o que nos leva a considerar a relação entre a justiça e o amor. Essa é uma convicção que atravessa o cristianismo desde o início, de que o amor é a plenitude da justiça. Quem ama, a Deus e ao seu próximo, cumpre toda a lei, ensinava o Apóstolo Paulo. O amor é a motivação profunda de toda a busca da justiça. Não é justo que, para se fazer justiça, se agrida a dignidade da pessoa humana. O amor é a primeira motivação, mesmo quando se busca a verdade sobre as falhas dos nossos irmãos, pois levá-los a reconhecer a verdade dos seus pecados, é introduzi-los num caminho de recuperação. A verdade tornar-nos-á livres, dizia São Paulo. A justiça é a busca da harmonia da fraternidade. Ser justificado é ser recriado para o amor.
O respeito pela dignidade da pessoa humana exige que uma cultura da justiça seja uma cultura da liberdade, aliás a justiça é dos mais belos frutos da flor da liberdade. Não se constrói a justiça reprimindo a liberdade. Aliás a história mostra-nos que a repressão da liberdade não diminui automaticamente a criminalidade; altera-a, diversifica-a, dá-lhe outros contornos e expressões. Mas a liberdade só será elemento dinamizador da harmonia da sociedade, se for vivida na responsabilidade. A valorização da responsabilidade, individual e colectiva, é factor decisivo numa cultura da justiça. Ser livre significa ser responsável e responsabilizável pelos actos livremente realizados. A liberdade não é, em si mesma, um factor de perturbação de uma sociedade; mas a irresponsabilidade impune, sim. Numa sociedade amadurecida, tudo deveria inculcar uma cultura da responsabilidade: a educação, as leis, os meios de comunicação, todas as estruturas da sociedade. E que ninguém fique impune do uso irresponsável da liberdade, seja quem for e qualquer que seja a função que ocupa na sociedade. Só uma sociedade que cultive a responsabilidade e peça contas dos usos irresponsáveis da liberdade, será verdadeiramente livre.
3. A justiça é obra de todos na sociedade, deve ser exigência e constituir qualidade primordial das relações humanas, na comunidade. Em momentos particularmente difíceis, que se exprimem na incerteza e insegurança de muitos e na revolta de alguns, os olhares voltam-se, espontaneamente, para as estruturas judiciais, a quem compete defender os direitos dos inocentes e punir os culpados, na aplicação da lei, no respeito pela dignidade fundamental de todos eles. Mas o cultivo da justiça é responsabilidade de todos nós. As estruturas judiciais são um serviço da sociedade, a que podem recorrer todos quantos lutam pela justiça.
Mas a luta pela justiça, porque é uma luta pela verdade, pela dignidade da pessoa e pela liberdade responsável, trava-se noutros areópagos. Para a sociedade como um todo, lutar pela justiça é, antes de mais, procurar evitar as injustiças, sejam de que ordem for, estender a mão a quem não se pode defender e promover sozinho, contribuindo, assim, para o progresso humano na sociedade como pátria da liberdade e da dignidade. Que Deus nos ajude e fortaleça para esta luta, nunca completamente vencida.
Sé Patriarcal, 19 de Janeiro de 2004,
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca