Homilia do bispo do Porto na Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo
Igreja da Trindade - 10 de Junho de 2004
Celebramos a Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, que na nossa tradição secular e na história da piedade cristã continuamos a designar por festa do Corpo de Deus ou “Corpus Christi”.
Esta solenidade é motivo para a contemplação do Amor de Deus e exaltação do modo como a Eucaristia manifesta e exprime este Amor. Mas é também um desafio de interpretação do que significa o mistério eucarístico no ambiente e contexto das Festas Pascais, do Pentecostes, da Santíssima Trindade e do Sagrado Coração de Jesus. Diríamos que o processo de calendarização litúrgica, de forma lógica e sistemática, faz convergir celebração e fé, devoção e piedade, para a vivência cristã mais íntima e para as expressões públicas de exaltação e testemunho. A condição e atitudes do crente partem da dimensão pessoal e individual para as dimensões social e pública, enquanto modos de afirmar que a Igreja que Cristo instituíu e estruturou é para ser enviada, tem uma estrutura de comunhão íntima que a faz viver e crescer visivelmente no mundo ao qual foi enviada.
Na Palavra (da Escritura) que precede e prepara a liturgia do Sacramento, evocamos uma figura, interpretamos uma mensagem e fixamos uma tradição.
1 – Uma figura
Melquisedec, que oferece pão e vinho a Abraão, cansado e faminto, é figura antecipada de Cristo e dos sacerdotes da Nova Aliança. Melquisedec é rei e sacerdote, como será Cristo numa perspectiva de sucessão e de diferença. O pão e o vinho que Melquisedec oferece a Abraão e ao seu povo juntou à mesma mesa a raça de Abraão e os súbditos do rei Melquisedec: O mesmo alimento junta em unidade povos diferentes.
O mundo em que vivemos é um mundo em evolução no sentido do progresso, mas a história não é necessariamente um progresso visível e óbvio. Por causa dos avanços e retrocessos. Assim, falamos na figura de Melquisedec e na oferta de pão e vinho a um povo que vai para a mesa porque tem fome e não experimenta preconceitos; consideramos, em consenso de tradição, que Melquisedec é uma figura do futuro Sacerdote e Rei que é Jesus Cristo, o qual, à mesa da última Ceia, transformou o pão no Seu Corpo e o vinho no seu Sangue, para se dar aos discípulos: “Tomai e comei, isto é o meu corpo”; e “Tomais e bebei, este é o Cálice do meu sangue”. Não podemos por isso deixar de denunciar algum escândalo e até sentir uma certa nostalgia. Estão em causa símbolos, sinais, figuras que compõem o fundo e o fundamento da nossa fé. Estão em causa povos diferentes mas famintos de paz e de amor, que não se sentam à mesa do mesmo pão e que em vez dos gestos de amizade e de amor se multiplicam em expressões de ódio, de violência, de vingança mútua, de retaliação.
Mas há também aqueles que dão testemunho da própria fé, adoram o Senhor presente na Eucaristia, contemplam com sinceridade e afirmam em atitudes de verdade a fé na “presença real” de Cristo na Eucaristia, na fidelidade à doutrina e à disciplina constante da Igreja e à tradição multissecular, mas não sentem fome deste pão ou não estão em condições de saciar-se deste alimento eucarístico. O mistério que celebramos é também motivo de reflexão no interior da Igreja.
2 – Mensagem
A Mensagem que o Evangelista S. Lucas nos entrega não é de facto uma crónica de um episódio ou acontecimento. É a mensagem que ele retira da celebração da Eucaristia na comunidade cristã em que participava. Recorda-nos a multidão que acorria e ouvia o Mestre falar do Reino de Deus, e evoca a fome das multidões e a solicitude do Mestre para lhes dar de comer. Reconhece a incapacidade dos homens e exige-lhes disponibilidade e colaboração mediante o que lhes é possível: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Lc. 9, ...). A Eucaristia, que os pães e peixes simbolizam não se destina a privilegiados isolados, mas à comunidade em espírito de partilha. Não serve para alimentar egoísmos e exclusões, mas para fazer unidade e cimentar comunhão.
Simbolicamente, esta comunidade celebrante e inspiradora do Evangelista é a multidão que vem do exílio e se reúne em assembleia de povo de Deus: Abandonou no exílio, deixou para trás eventualmente casa e projectos, amigos e pecados, escravidão a vícios que pesavam na consciência e comprometiam na sociedade, deixou ideias e preconceitos, respeitos humanos e falsos pudores, sonhos fátuos e ideologias utópicas, deixou para trás a idade e o tempo cuja memória força e apressa decisões, e abre caminho à conversão. Vinda do exílio, esta multidão entrou no deserto da libertação e da liberdade, está em busca da novidade prometida e da paz no caminho que dá felicidade e reencontra o sentido da vida.
O Evangelho diz que das sobras dos pães e dos peixes foram recolhidos doze cestos. Não está em causa a quantidade como tal nem uma irrealista totalidade. A Eucaristia simbolizada no milagre é um dom de Deus que nunca se esgota perante a multidão que tem fé e quer alimentar-se.
O Evangelista fala-nos, nesta Mensagem, da Eucaristia celebrada, partilhada e distribuída numa comunidade cristã genuína, autêntica, simbólica e normativa. Como sacramento ou sinal, a Eucaristia é também hoje memória e apelo: “Fazei isto em memória de mim”; “Comei e bebei”. Memória de Cristo como apelo à comunhão universal, este dom de Deus é sempre maior e mais vasto que a fome dos homens. Por isso, situa-nos espiritualmente no domínio da utopia, que é a condição da vida neste mundo, em tensão escatológica entre a realidade que nos envolve e o ideal do banquete definitivo, na mesa do Pai comum. Mas esta utopia de vida em tensão escatológica é condição da Esperança que nos anima, que deve animar a Igreja e todos os cristãos.
3 - Tradição e Doutrina
A partir da mensagem do Evangelho, o Apóstolo S. Paulo ensina a orientar a celebração da Eucaristia a partir da vida e das realidades concretas, ou, por outras palavras, aponta a celebração da Eucaristia como exigência para a vida.
A comunidade cristã de Corinto estava dividida pela oposição mútua de classes sociais, que no entanto celebravam a Eucaristia. Constituindo teoricamente um só Corpo e comungando o mesmo pão eucarístico, na realidade esta comunidade não vivia em paz, pelo que o sacramento da unidade e da comunhão convivia com o escândalo da divisão, a falsidade e a mentira.
O Apóstolo, que se sentia responsável por essa comunidade que evangelizara e organizara, transmite-lhe, lembra-lhe, o que sabiam ele e os fiéis. Cristo ficou, estava com eles, como alimento a receber, repartido e partilhado. Sendo sacramento de Cristo, era sacramento da unidade necessária e sacramento que, supondo a unidade, é factor de unidade e comunhão.
Conclusão
Esta solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo é sempre uma oportunidade para reflectirmos sobre as nossas comunidades, tantas vezes divididas apesar da Eucaristia que celebram, e apesar de comerem o mesmo pão da unidade. E num tempo em que somos testemunhas de tantas guerras, violências, ódios, oposições e divisões que perturbam a paz, roubam a felicidade e lançam sombras, medos e nuvens no horizonte de todos, vamos perdendo a autoridade e porventura a coragem para apontar a Eucaristia como sinal, sacramento e instrumento de unidade, de fraternidade e de felicidade entre os homens.
Mas a Eucaristia é também expressão do Amor misericordioso de Deus. Não é um prémio para distinguir quem quer que seja ou para fomentar presunção, mas é um dom oferecido aos pecadores que somos, não para permanecermos no pecado ou na indiferença, mas para nos libertarmos, para sermos verdadeiramente livres. “Todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, anunciareis a morte do Senhor até que Ele venha” (I Cor. 11, 26). Sacramento da unidade e da vontade de Deus em Cristo, sinal da unidade que desejamos e, sinal da unidade de que tanto precisamos, a Eucaristia é também estimulo para a vida, expressão lídima da fé cristã, fonte de devoção e piedade que alimenta, anima e orienta no sentido e vontade de sermos, de virmos a ser, o que ainda não somos mas desejamos ser. Que assim seja!
Porto, Igreja da Trindade, 10 de Junho de 2004
D. Armindo Lopes Coelho, Bispo do Porto