Nesta Celebração de acção de graças pelos 40 anos da Universidade Católica Portuguesa, ao serviço da Igreja e do País, mesmo para além de fronteiras eclesiásticas, territoriais, gostaria de iniciar esta homilia, partilhando convosco uma meditação da Palavra proclamada.
1 - Faz-te ao largo e lançai as redes para a pesca (Evangelho de Lucas): um convite paradoxal quando se passou toda a noite numa faina sem qualquer resultado. Mas, por outro lado, é um apelo à confiança n’Aquele que fala, que comunica a Palavra de Deus: já que o dizes, lançamos as redes.
Os grandes projectos amadurecem no silêncio da noite do insucesso vivido na entrega do amor e da confiança ao Deus da vida, que transforma o nosso pobre quotidiano de pescadores simples e ignorantes na aventura ousada de pescadores de homens. Basta estar dispostos a segui-Lo, a deixar tudo e a não temer arriscar nas grandes causas mesmo que tudo convide a resignar-se ao fracasso da noite.
2 - O que recebi isso vos transmiti (II Leitura da 1ª Carta aos Coríntios): este é o lema paradigmático de Paulo, o apóstolo das nações e o homem que soube proclamar Jesus Cristo Crucificado e Ressuscitado no aerópago de Atenas, a cosmopolita urbe onde não faltava o panteão, onde todos os deuses gozavam de cidadania, mas o Deus desconhecido era mesmo o que se precisava conhecer para que a sabedoria, a verdadeira filosofia pudesse encontrar-se com a teosofia, sabedoria de Deus (cfr. Actos 17, 16 ss).
Saulo de Tarso, que não conheceu o Jesus histórico, o Jesus de Nazaré na sua vida terrena, tornou-se, por eleição divina, por graça, no Evangelizador que comunicando uma tradição recebida é capaz de a inculturar no espaço helénico, no mundo bem construído dos gregos. Orgulhoso das suas origens judaicas vive a dupla fidelidade, nem sempre fácil: na tradição descobre a energia da inovação. Ele é o homem das grandes encruzilhadas teológicas e históricas, ficando na memória do cristianismo como o grande teólogo que transmite de forma inédita e cheia de vigor, a herança recebida.
3 - Eis-me aqui: podeis enviar-me (I Leitura do Livro de Isaías): esta é a atitude do profeta chamado a uma missão quase impossível, ou seja, comunicar ao seu povo as palavras de Deus. Está consciente de ser um homem de lábios impuros no meio de um povo de lábios impuros. E o Deus que o chama é o três vezes santo que se lhe revela no trono de glória da sua majestade, rodeado de serafins e querubins.
Mas esse Deus santo é o Emanuel, o Filho de uma virgem. A glória de Deus é o homem vivo e vivente, e aqui a transcendência divina é a sua imanência, o seu habitar no meio de nós, o Verbo feito carne. Nós vimos a Sua glória na fragilidade de um menino nascido em Belém, que é o único intérprete do rosto do Pai, que é o Caminho, a Verdade e a Vida. O profeta, que é a vocação de todos nós, viverá sempre entre a contemplação da Verdade que se desvela e a incarnação no tempo e na cultura de todos os tempos dessa Verdade que o supera.
É à luz desta meditação sobre a Palavra deste Domingo, que agora partilho convosco alguns desejos e desafios:
1 - O caminho percorrido em 40 anos pela Universidade Católica Portuguesa, bem descrito na Mensagem do Magnífico Reitor para este dia, é garantia de que “o muito que tem a fazer no futuro” deverá ser uma pesca abundante e, para isso, apelamos à partilha de esforços para que a faina não se perca. A inspiração inicial, dos fundadores, constitui para todos uma fonte de renovada energia, uma tradição fecunda que nos desafia à inovação, a fazermo-nos ao largo. Enraizados na fé, procuremos todos dar vida a esta tradição, torná-la actuante, potenciá-la no nosso trabalho quotidiano em benefício de todos.
2 - Hoje, as fronteiras alargam-se, os desafios intensificam-se e é precisamente na fidelidade criativa às origens, ao Evangelho recebido e anunciado por tantos obreiros que já partiram, que encontraremos a sabedoria para afrontar as novas tarefas num espaço multicultural, no espaço do regresso dos deuses e duma certa confusão babélica de linguagens, é neste espaço que o Espírito Santo é capaz de recompor, num Pentecostes de amor, as diferenças. Hoje o desafio unificante parece-me situar-se no anúncio do Evangelho da Vida que exige de todos um serviço, um cuidar da vida toda e de todos. Ele é a Vida que pode gerar os espaços culturais onde a verdadeira humanidade do homem se reencontra. Os Humanismos têm as suas raízes no Homem, no menino feito carne que é a palavra, a sabedoria que desce do alto para habitar com o homem peregrino, que busca a Verdade e o seu esplendor pelos caminhos difíceis do estudo, da investigação, da partilha dos saberes, da comunicação dos frutos das fainas nocturnas, às vezes com o sabor amargo do fracasso, da ambiguidade e da tentação do desânimo. Mas, coragem, não temais, lançai sempre de novo as redes. Cristo e a Sua doutrina serão sempre o caminho para a vida, com o sentido e a razão de ser que só Ele lhe pode dar desde a concepção até a morte.
3 - Fazer-se ao largo, olhar ao longe desde “o Minho a Macau”, como a história de 40 anos o torna evidente, desde o Ocidente ao Oriente, num tenaz esforço de diálogo de culturas e tradições, na comunhão de igrejas irmãs. Foi este o percurso de missionários que serviram a cultura e as culturas locais. Hoje, este diálogo de comunhão na fé e na cultura é uma exigência mais sentida, nesta época da globalização. Esperamos firmemente que a aldeia global não seja o resultado de imperialismos homogeneizantes, mas o fruto de um acolhimento das diferenças, não apenas toleradas mas amadas e promovidas.
A Universidade Católica tem um projecto necessário para a Sociedade Portuguesa. Ela reconhece o específico dos seus conteúdos. Sente de o oferecer, sendo, nos diversos Centros e Faculdades, fiel ao espírito que lhe deu vida. Assim a Sociedade Portuguesa e o poder legitimamente instituído lhe proporcione uma igualdade de oportunidades. Será Portugal a beneficiar.
Esta eucaristia é um canto de acção de graças por todos vós que tornais possível este projecto, que é sempre novo e tão antigo como o apelo do Evangelho. Quero nesta Eucaristia lembrar os que estão junto de Deus e que fizeram a Universidade: o Senhor Cardeal Cerejeira que a fundou, o Senhor Cardeal D. António Ribeiro que a ajudou a atravessar momentos duros, o Senhor Padre Bacelar de Oliveira que por ela deu a vida e o talento, e o Senhor Padre Isidro Alves que tanto entusiasmo manifestou e que Deus chamou a Sí cedo. A Universidade Católica, fiel às suas origens, saberá responder hoje aos novos desafios e afirmar-se, com o seu contributo original, nas múltiplas ofertas dos nossos areópagos culturais, que podem correr o risco de transformar o pluralismo cultural num politeísmo camuflado.
Seja a UCP fiel ao Evangelho, à Sua Sabedoria, como caminho para a verdade, como o diz no seu lema. Que esta seja a sua preocupação, sem medos nem complexos.
Que Maria, sede da sabedoria, nos ensine a amar o Deus de Abraão, Isaac, Jacob, o Deus de Jesus, carne da sua carne e Filho eterno do Pai, exemplar único e insuperável da incarnação do Evangelho na cultura e nas culturas.
Braga, 4 de Fevereiro de 2007.
+ Jorge Ferreira da Costa Ortiga, Arcebispo Primaz e
Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa