Dossier

A condição migrante na Bíblia

Agência Ecclesia
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Frei Herculano Alves, OFMCap

Podemos dizer que o povo de Israel viveu, em todo o percurso da sua história, a condição migrante – na dupla vertente de emigrante e de imigrante. Uma das primeiras confissões de fé deste povo é uma confissão de imigração, da Caldeia para o território que se chamará de Israel: Meu Pai era um arameu errante... (Dt 26,5-10). O povo, filho do Abraão imigrante, tinha nas suas veias um “sangue migrante”… 

Assim, o povo nasce, como povo, na condição de emigrante, no Egito, etapa fundamental da sua história. Esta situação constituirá mesmo uma ideia teológica fundamental que alimentará a espiritualidade de Israel. Esta teologia perpassa todas as etapas da sua história e tem as mais belas ressonâncias até ao Apocalipse, livro que apresenta uma “atualização” do Êxodo, para a meta-história do novo “Israel”.
Esta consciência nacional de povo e/imigrante levou o povo a criar vocabulário próprio para a expressar devidamente. Assim nokri é o estrangeiro que vive fora do país, enquanto o termo ger exprime o estrangeiro que vive no país. Só este último é protegido pela Lei, como a viúva e o órfão (Ez 47,21-22; Lv 19,9-10; Nm 34,15; Ex 12,48); o outro é impuro. Na língua grega do Novo Testamento aparece a mesma conceção: allogenes é o estrangeiro que vive como minoritário, com sua língua e cultura noutro país; assim o Bom Samaritano de Lc 17,18, que vive na Judeia. Xenos é o estrangeiro imigrado, com outra língua, cultura, raça (Mt 25,31-36); allotrios é o que é indiferente, estranho (assim, a oposição entre o pastor e o estrangeiro, para as ovelhas, em Jo 10,5).
Este vocabulário pode manifestar alguma xenofobia – que, aliás, era comum nos povos antigos. No entanto é esta condição do povo de Israel que lhe é recordada por Deus como argumento para aceitar e tratar bem os povos que se refugiam em território de Israel. Esta ordem é dada a propósito de guardar o sábado: 
“Não farás trabalho algum, nem tu, nem os teus filhos e filhas, nem o teu escravo ou escrava, nem o teu boi, o teu jumento ou qualquer outro animal, nem o estrangeiro que está dentro das tuas portas, para que o teu servo e a tua serva descansem como tu. Lembra-te que foste escravo na terra do Egito, donde o Senhor, teu Deus, te tirou com mão forte e braço estendido (Dt 5,14-15).
Mais ainda, os estrangeiros, imigrados para a terra de Israel, com “residência permanente” podiam viver a fé dos israelitas, gozando dos mesmos privilégios espirituais e não apenas na condição de assimilados ou conquistados (como foi o caso dos idumeus/edomitas), durante as guerras dos Macabeus. Esta e outras guerras contra os estrangeiros – mesmo depois de Jesus – situam-se, em grande medida, nesta linha do não contágio.
De facto, quando o estrangeiro é visto com um elemento perturbador em Israel, não o é por motivos propriamente políticos ou racistas, mas sobretudo religiosos: é que o estrangeiro, que adorava deuses estranhos à fé monoteísta de Israel, podia contagiar negativamente a fé dos israelitas. Para evitar este “perigo”, é mesmo proibido o casamento com mulheres estrangeiras: Ne 13,23-27; ver 1 Rs 3,1; 11,1-3. Chega-se mesmo ao ponto de obrigar a repudiar tais mulheres: Esd 10,10-11. Frequentemente a mesa comum era proibida (também por outros povos), não só por interditos alimentares (Act 10,-- Pedro), mas também porque o estrangeiro era considerado “impuro”.
Como estamos a ver, os interesses religiosos são mais centrípetos que quaisquer outros: Israel procura viver a sua fé na fidelidade a Javé, como condição de guarda da própria identidade, que o leva a viver uma conceção exclusivista da salvação de Deus. A aliança com Deus, no Antigo Testamento, apresenta ainda um caráter nacionalista.
Mais tarde, Israel vai dar-se conta de que tem uma história comum (mesmo religiosa) com outros povos do Médio Oriente Antigo: as festas, as leis, o culto (...), vem-lhe quase tudo de fora. 
É aqui que os profetas se levantam para despertar no povo uma dimensão missionária, dando à Aliança um caráter mais universal, de partilha da própria fé com outros povos ou nações estrangeiras, as goim. É nesta altura que começa a triunfar o movimento centrífugo sobre o movimento centrípeto, nacionalista.
Jesus irá dar a máxima expressão ao movimento centrífugo dos profetas, anunciando uma nova família para todos os povos, na qual todos têm um Pai-nosso, um Pai comum, igualmente Pai de todos e para todos. Na nova humanidade anunciada, já não corre nas veias apenas o sangue físico, que é causa de tantos egoísmos e de guerras tribais e nacionalistas. Corre, agora, o sangue novo da Sua Palavra. Esta é o sangue novo que juntará todos os povos numa só família:
Quem são minha Mãe….
Esta é, sem dúvida a maior revolução trazida pelo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Se fosse vivida, a humanidade seria outra e não haveria problemas e guerras entre pessoas que têm a “culpa” de terem nascido noutro país, com outra cultura, outra pele… outra religião! Quando vamos rezar bem o Pai-nosso?
Frei Herculano Alves,
OFMCap

Podemos dizer que o povo de Israel viveu, em todo o percurso da sua história, a condição migrante – na dupla vertente de emigrante e de imigrante. Uma das primeiras confissões de fé deste povo é uma confissão de imigração, da Caldeia para o território que se chamará de Israel: Meu Pai era um arameu errante... (Dt 26,5-10). O povo, filho do Abraão imigrante, tinha nas suas veias um “sangue migrante”…

Assim, o povo nasce, como povo, na condição de emigrante, no Egito, etapa fundamental da sua história. Esta situação constituirá mesmo uma ideia teológica fundamental que alimentará a espiritualidade de Israel. Esta teologia perpassa todas as etapas da sua história e tem as mais belas ressonâncias até ao Apocalipse, livro que apresenta uma “atualização” do Êxodo, para a meta-história do novo “Israel”.

Esta consciência nacional de povo e/imigrante levou o povo a criar vocabulário próprio para a expressar devidamente. Assim nokri é o estrangeiro que vive fora do país, enquanto o termo ger exprime o estrangeiro que vive no país. Só este último é protegido pela Lei, como a viúva e o órfão (Ez 47,21-22; Lv 19,9-10; Nm 34,15; Ex 12,48); o outro é impuro. Na língua grega do Novo Testamento aparece a mesma conceção: allogenes é o estrangeiro que vive como minoritário, com sua língua e cultura noutro país; assim o Bom Samaritano de Lc 17,18, que vive na Judeia. Xenos é o estrangeiro imigrado, com outra língua, cultura, raça (Mt 25,31-36); allotrios é o que é indiferente, estranho (assim, a oposição entre o pastor e o estrangeiro, para as ovelhas, em Jo 10,5).

Este vocabulário pode manifestar alguma xenofobia – que, aliás, era comum nos povos antigos. No entanto é esta condição do povo de Israel que lhe é recordada por Deus como argumento para aceitar e tratar bem os povos que se refugiam em território de Israel. Esta ordem é dada a propósito de guardar o sábado:

“Não farás trabalho algum, nem tu, nem os teus filhos e filhas, nem o teu escravo ou escrava, nem o teu boi, o teu jumento ou qualquer outro animal, nem o estrangeiro que está dentro das tuas portas, para que o teu servo e a tua serva descansem como tu. Lembra-te que foste escravo na terra do Egito, donde o Senhor, teu Deus, te tirou com mão forte e braço estendido (Dt 5,14-15).

Mais ainda, os estrangeiros, imigrados para a terra de Israel, com “residência permanente” podiam viver a fé dos israelitas, gozando dos mesmos privilégios espirituais e não apenas na condição de assimilados ou conquistados (como foi o caso dos idumeus/edomitas), durante as guerras dos Macabeus. Esta e outras guerras contra os estrangeiros – mesmo depois de Jesus – situam-se, em grande medida, nesta linha do não contágio.

De facto, quando o estrangeiro é visto com um elemento perturbador em Israel, não o é por motivos propriamente políticos ou racistas, mas sobretudo religiosos: é que o estrangeiro, que adorava deuses estranhos à fé monoteísta de Israel, podia contagiar negativamente a fé dos israelitas. Para evitar este “perigo”, é mesmo proibido o casamento com mulheres estrangeiras: Ne 13,23-27; ver 1 Rs 3,1; 11,1-3. Chega-se mesmo ao ponto de obrigar a repudiar tais mulheres: Esd 10,10-11. Frequentemente a mesa comum era proibida (também por outros povos), não só por interditos alimentares (Act 10,-- Pedro), mas também porque o estrangeiro era considerado “impuro”.

Como estamos a ver, os interesses religiosos são mais centrípetos que quaisquer outros: Israel procura viver a sua fé na fidelidade a Javé, como condição de guarda da própria identidade, que o leva a viver uma conceção exclusivista da salvação de Deus. A aliança com Deus, no Antigo Testamento, apresenta ainda um caráter nacionalista.

Mais tarde, Israel vai dar-se conta de que tem uma história comum (mesmo religiosa) com outros povos do Médio Oriente Antigo: as festas, as leis, o culto (...), vem-lhe quase tudo de fora.

É aqui que os profetas se levantam para despertar no povo uma dimensão missionária, dando à Aliança um caráter mais universal, de partilha da própria fé com outros povos ou nações estrangeiras, as goim. É nesta altura que começa a triunfar o movimento centrífugo sobre o movimento centrípeto, nacionalista.

Jesus irá dar a máxima expressão ao movimento centrífugo dos profetas, anunciando uma nova família para todos os povos, na qual todos têm um Pai-nosso, um Pai comum, igualmente Pai de todos e para todos. Na nova humanidade anunciada, já não corre nas veias apenas o sangue físico, que é causa de tantos egoísmos e de guerras tribais e nacionalistas. Corre, agora, o sangue novo da Sua Palavra. Esta é o sangue novo que juntará todos os povos numa só família:

Quem são minha Mãe….

Esta é, sem dúvida a maior revolução trazida pelo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Se fosse vivida, a humanidade seria outra e não haveria problemas e guerras entre pessoas que têm a “culpa” de terem nascido noutro país, com outra cultura, outra pele… outra religião! Quando vamos rezar bem o Pai-nosso?

Frei Herculano Alves,

OFMCap

 

 



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