1- O problema
A União Europeia está, sem qualquer dúvida, num momento decisivo da sua vida. O alargamento a Leste e as suas dificuldades institucionais, políticas e operativas, são o aspecto mais visível, mas em muitos outros âmbitos se manifesta que os tempos estão diferentes e a ocasião é crucial. De facto, multiplicam-se as dificuldades, incertezas e indecisões a todos os níveis da Europa.
Todos estes elementos se reconduzem a uma causa principal: o fim da “guerra fria”. O quadro geral em que nasceram as instituições do pós-guerra terminou em 1989. Hoje, quase década e meia depois, ainda não é claro qual vai ser a nova estrutura a surgir. Mas são cada vez mais evidentes os problemas de funcionamento da anterior que herdámos. Organizações como a ONU, a NATO, e tantas outras, incluindo a União Europeia, revelam tensões inesperadas e enfrentam obstáculos estranhos. Fenómenos como a globalização, o superterrorismo, o activismo americano, e tantos outros, manifestam já um diferente quadro emergente. A ordem internacional está a evoluir a taxa acelerada para um horizonte ainda desconhecido.
2- A primeira tolice
Perante estas exigência candentes, a UE reagiu da pior maneira possível: convocou uma Convenção constitucional. Quando se vive no meio de um nevoeiro estrutural e estão em cima da mesa problemas elementares e concretos, os líderes europeus escolhem entrar numa vasta discussão de conceitos, princípios e filosofias.
É preciso resolver rápido o novo xadrez institucional, repartir já o poder numa comunidade alargada e redefinir imediatamente funções e competências. Tudo isto tem de ser realizado de forma pragmática e flexível, pois as novas directrizes mundiais ainda são emergentes e incertas. Mas em vez de abordar directamente as questões, abriu-se uma magna discussão conceptual. No melhor estilo bizantino, vai perder-se tempo a redigir preâmbulos, a reescrever e compatibilizar velhos tratados, a repescar antigas discussões nunca sanadas. O mundo que espere.
Deste modo, o próprio processo do Tratado Constitucional é, em si mesmo, a demonstração dos piores traços da burocracia de Bruxelas. Os americanos conquistam países, os terroristas assustam o mundo, a economia mundial baloiça à beira da recessão, a globalização avança no meio de incertezas. Mas, enquanto isso, os líderes europeus divertem-se a debater modelos constitucionais.
As questões da inserção do nome de Deus e da referência à herança cristã no preâmbulo dessa Constituição são manifestações insólitas disto. O problema é completamente espúrio. Nem Deus Nosso Senhor nem a herança cristã estão em causa neste momento ou dependem de qualquer decisão recente. Mas se vamos a decidir uma Constituição é impossível deixar de os abordar. E abordá-los a este nível é ressuscitar velhas querelas inúteis, que nos afastam cada vez mais dos verdadeiros e graves problemas que a realidade actual nos impõe.
3- A segunda tolice
Para piorar ainda mais tudo isto, a primeira versão do referido Preâmbulo decidiu omitir ambas as referências a Deus e à herança cristã. Isso foi desafortunado para os convencionais, mas muito vantajoso para a Igreja Católica. De facto, sendo a sua influência uma evidência impossível de iludir, fica também evidente o chauvinismo dos redactores. Múltiplas vozes, de múltiplos quadrantes se levantaram contra a arbitrariedade e injustiça dessa omissão. Assim surgiu um debate que só pode prejudicar o texto e favorecer a causa do Cristianismo. De facto, este vai ganhar sem dúvida. Vai ganhar mesmo que perca.
A indignação, o incómodo e a irritação por este ostensivo desprezo criou já uma mancha desprestigiante e desnecessária na nascente Constituição. A discussão sobre o tema é incontornável e só pode levar a um de dois resultados. A primeira hipótese é a Constituição acabar por incluir alguma referência ao tema, recuando na posição inicial e assim concedendo uma vitória aos cristãos, por pequena que seja. A outra alternativa é insistir e consagrar a actual versão anódina e neutra. Nesse caso, quem quer que leia no futuro, o Tratado nuclear da União Europeia, vai notar essa ausência. A omissão do preâmbulo da Constituição vai gritar tão alto como o túmulo vazio de Domingo de Páscoa.
Mas existe uma terceira possibilidade, a mais triste e sinistra de todas. É bem possível que o texto agora em discussão acabe inexoravelmente no cesto de papéis da História. O novo horizonte do pós-“guerra fria”, os novos problemas da Europa alargada, a nova dinâmica de futuro, podem fazer com que este texto fique perdido, como um triste exemplo da loucura da nossa geração.
João César das Neves, Professor UCP