Dossier

A Doutrina Social da Igreja no contexto da globalização

José Dias da Silva
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A segunda parte desta magnífica encíclica sobre a caridade analisa um âmbito no qual a DSI tem um papel de destaque: "o empenho pela justiça e o amor no mundo actual" (30). O Papa começa por responder à clássica crítica marxista, ainda hoje tão repetida, de que "as obra de caridade - as esmolas - seriam uma forma de os ricos se subtraírem à instauração da justiça e tranquilizarem a consciência" em vez de "criarem uma ordem justa, na qual todos receberiam a sua respectiva parte de bens da terra" (26), recolocando-a noutro plano: "o amor - caritas - será sempre necessário, mesmo nas sociedades mais justas… Sempre haverá sofrimento que necessita de consolação e ajuda. Haverá sempre solidão". Sempre será necessária, pois, "a amorosa dedicação pessoal" (28). Por isso, "a Igreja nunca poderá ser dispensada da prática da caridade enquanto actividade organizada dos crentes, como aliás nunca haverá uma situação onde não seja precisa a caridade de cada um dos indivíduos cristãos, porque o homem, além da justiça, tem e terá sempre necessidade do amor" (29). Além disso, hoje exige-se uma maior disponibilidade para socorrer o próximo mais necessitado. Por um lado, os meios de comunicação de massas tornam o planeta mais pequeno pondo-nos em contacto imediato com "uma miséria multiforme, tanto material como espiritual" e com todos os homens e culturas. "Por outro lado - e trata-se de um aspecto provocatório e ao mesmo tempo encorajador do processo de globalização - o presente põe à nossa disposição inumeráveis instrumentos para prestar ajuda humanitária aos irmãos mais necessitados" (30). Há aqui um apelo claro à "fantasia da caridade" que nos deixou João Paulo II (NMI 50). No contexto de globalização, na qual os interesses económicos se sobrepõem e até anulam a dimensão ética, a função que hoje cabe à "doutrina social católica" ou à "doutrina social da Igreja" (o Papa utiliza as duas expressões) não é conferir à Igreja "poder sobre o Estado nem impor àqueles que não compartilham a fé perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta" (28). Daí que, recorda o Papa mais à frente, "a caridade não deve ser um meio em função daquilo que hoje é indicado como proselitismo. O amor é gratuito; não é realizado para outros fins" (31). A DSI "deseja simplesmente contribuir para a purificação da razão e prestar a própria ajuda para fazer que aquilo que é justo possa, aqui e agora, ser reconhecido e, depois, também, realizado" (28). O Papa insiste quatro vezes nesta função de purificar a razão: "a razão deve ser continuamente purificada porque a sua cegueira ética, derivada da prevalência do interesse e do poder que a deslumbram, é um perigo nunca totalmente eliminado" (28). No relacionamento entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e a actividade caritativa da Igreja, a formação de estruturas justas compete, de forma imediata, à esfera da política e só de forma mediata é dever da Igreja, a quem "compete contribuir para a purificação da razão e o despertar das forças morais, sem as quais não se constróem estruturas justas nem estas permanecem operativas por muito tempo" (29). Aqui permito-me duas observações. A primeira tem a ver com alguma ambigui-dade, na medida em que, ao apontar a Igreja como aparentemente a única capaz de purificar a razão, sugere alguma menoridade da razão e a necessidade da sua tutela pela Igreja, como se, numa sociedade plural e secularizada, a posição da Igreja não fosse uma das várias propostas que, embora deva ser proclamada e testemunhada "oportuna e inoportunamente", não poderá nunca ser imposta: "o amor é gratuito". Por outro lado, destacar que o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa é próprio dos leigos e só de forma mediata da Igreja (29) e afirmar que "a Igreja deve inserir-se na luta pela justiça pela via da argumentação racional e deve despertar as forças espirituais, sem as quais a justiça não poderá afirmar-se nem prosperar" (28) podem contribuir para desvalorizar uma afirmação central do Sínodo de 1971, ainda não assumida pelo povo de Deus, de que "a acção pela justiça e a participação na transformação do mundo aparecem-nos claramente como uma dimensão constitutiva da pregação do Evangelho, isto é, da missão da Igreja em prol da redenção e da libertação do género humano de todas as situações de opressão" (JM 6). José Dias da Silva, Membro da Comissão Nacional Justiça e Paz


Bento XVI