Momento de crispação no ensino analisado à luz da recente nota pastoral da CEP
Estamos actualmente a viver um momento de grande crispação no ensino. O governo, talvez o mais reformista no âmbito da educação desde 1974, introduziu profundas alterações ao funcionamento das escolas, tomando medidas que os docentes sentiram como gravosas em relação às condições concretas em que actuam: aumento de tempo de trabalho dos docentes nas escolas, em alguns casos significativo; alteração da estrutura da carreira docente com a introdução de duas categorias (à segunda só se acede a partir de determinadas condições, uma das quais é a existência de vagas); transformação do sistema de avaliação dos docentes, introduzindo quotas que não permitem a atribuição das mais altas avaliações senão a um número restrito de docentes e um complexo sistema de avaliação em que os docentes são avaliados pelos seus pares; a introdução de uma prova de ingresso na carreira docente; alteração ao Estatuto do Aluno, que implica, em parte, mais trabalho para os docentes; modificação da legislação sobre gestão e administração das escolas; etc.
Se algumas das medidas foram aceites sem grande contestação, como a introdução de regras mais claras sobre formação contínua dos docentes (todos sabemos que a formação contínua nem sempre se dirigia às necessidades concretas dos professores, das escolas e dos alunos), a maior parte veio criar um clima de descontentamento e de agitação nas escolas, bem como uma relação de desconfiança entre, por um lado, as escolas e os docentes e, por outro, a tutela. A questão central parece colocar-se ao nível da quantidade de alterações num tão curto lapso de tempo e ao nível das implicações para a vida dos docentes que decorre dessas reformas. O antigo adágio Roma e Pavia não se fizeram num dia talvez tenha cabimento neste processo.
A Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), na sua assembleia plenária de Novembro de 2008, aprovou uma Carta Pastoral sobre a Escola, na qual faz um diagnóstico da situação e propõe algumas soluções para o problema crucial do ensino em Portugal.
i) O sistema parece não responder à necessidade de uma educação integral, que contemple “valores espirituais, estruturação hierárquica de saberes e de valores, integração do saber científico-tecnológico num saber cultural mais vasto, mais abrangente e mais englobante” (CEP 5).
ii) Neste sentido, verifica-se que há uma deficiente “defesa do primado da solidariedade e da fraternidade sobre o interesse egoísta e a competição desenfreada” (CEP 5).
iii) A escola manifesta dificuldade em lidar com a “heterogeneidade social e as desigualdades”, porque não cria “oportunidades apropriadas de desenvolvimento integral para cada um e para todos. E não só manifesta estas dificuldades como se encontra demasiado isolada no cumprimento deste objectivo social e cultural do maior alcance” (CEP 9). Um problema de tão vasta dimensão só pode ser resolvido com o apoio de todos os intervenientes no processo educativo, incluindo as estruturas de apoio social cuja colaboração com a escola é ainda tão precária. A escola não pode resolver todos os problemas da sociedade; muitos estão a montante dela e só uma intervenção na sua origem pode levar à sua resolução.
iv) Por isso, o documento, apelando à participação de todos (“Nenhum cidadão e nenhuma instituição social deveriam ficar indiferentes face a estas dificuldades” (CEP 10), põe o dedo na ferida quando refere que estes obstáculos derivam, em parte, “de uma actuação política inconsequente e inconstante, ao longo de décadas, em parte consequência da falta de liberdade e de autonomia, que desresponsabilizam os actores” e em parte devidos a um “clima cultural que continua a apostar muito pouco na educação de todos e ao longo de toda a vida como maior investimento que podemos fazer para virmos a ter um futuro melhor e uma sociedade mais justa” (CEP 10). A autonomia das escolas é hoje uma necessidade cada vez mais premente. Mas como pode a escola adquirir autonomia se o sistema pretende determinar todas as suas actuações através de uma enorme produção legislativa, altamente restritiva da responsabilidade das escolas?
v) Outra questão problemática é a existência de um ensino muito rígido, com poucas alternativas de percursos, especialmente no ensino básico: “Também a educação básica de nove anos carece de melhorias na qualidade das aprendizagens para todos, com rigor e exigência, diversificando estratégias de ensino e de aprendizagem e criando os itinerários mais adequados para todos poderem concluí-la com qualidade e sucesso” (CEP 15). O actual governo introduziu algumas possibilidades alternativas, mas é urgente intensificar estas reformas, por forma a permitir aos alunos encontrarem respostas adequadas às suas aptidões e vocações. De facto, o chamado ensino unificado se, por um lado, veio procurar democratizar o acesso ao saber, por outro teve o efeito não desejado de aumentar o insucesso e o abandono escolar, porque muitos alunos não se reviam nas exigências do percurso único. A desejada diversificação não é, de modo nenhum, incompatível com a exigência e o rigor. Em cada percurso, deve exigir-se a prossecução de um currículo exigente que torne os alunos competentes para enfrentarem as situações profissionais e pessoais a que vão ter de responder.
vi) O documento aponta ainda “o ambiente de permissividade e de descrédito que se instalou em muitas instituições escolares” (CEP 15). De facto, esta é uma das questões fundamentais do nosso sistema. Sem disciplina e rigor, não é possível qualquer aprendizagem. As sucessivas alterações legislativas têm vindo infelizmente a retirar aos professores a autoridade tão necessária à sua acção enquanto educadores. Confundiu-se amiúde autoridade com autoritarismo e opôs-se autoridade a democracia de tal forma que qualquer forma de exercício de autoridade era interpretada como um retorno à época anterior a 1974. Urge, por isso, repor a autoridade dos professores para que as escolas possam funcionar, sem os atropelos ao sossego que o processo de ensino-aprendizagem exige.
vii) A Carta pastoral refere que o “Estado tem sido, por vezes, em virtude das políticas dos diversos governantes, um obstáculo à melhoria da qualidade da escola portuguesa” (CEP 16). As razões de tal afirmação são claramente apontadas: “as reformas educativas sustentam-se frequentemente em trabalhos técnicos de gabinetes que infundem no sistema, por imposição linear imediata, mudanças que substituem outras mudanças ainda não devidamente implementadas nem avaliadas. Assim se lança ou favorece o caos permanente e a insegurança nos profissionais docentes que trabalham nas escolas; as medidas são impostas, sem valorizar a diversidade de escolas e contextos e desprezando a liberdade de actuação dos professores, pais, autarquias e outros agentes locais, com projectos educativos próprios; não se respeita o princípio da subsidiariedade e tudo se determina do centro para a periferia, concedendo, a custo e de modo sempre tímido, alguma autonomia e liberdade de actuação às escolas, o que leva os profissionais docentes a desvalorizar e desacreditar a sua capacidade de acção e de melhoria da qualidade da educação; este quadro de desresponsabilização e até de descrédito acerca do trabalho dos docentes a todos penaliza e impede uma evolução positiva mais concertada” (CEP 16). Penso que não seria possível ser mais claro e objectivo no diagnóstico dos problemas! E não se trata de uma questão de política partidária, porque as alterações a que o documento se refere são transversais a vários governos de feição política diversa.
viii) Uma das questões que tem tido maior impacto na política da educação é o facto de se pretender equacionar a educação do ponto de vista das leis do mercado: “Não é legítimo analisar a questão da educação e do ensino, designadamente ao nível básico e secundário, à luz das leis do mercado. Os seus custos não são custos de produção, mas de formação e crescimento de pessoas a integrar socialmente” (CEP 17). A escola é, por vezes, entendida como uma empresa que produz determinados serviços, que deve ser avaliada pelos resultados obtidos, como se tudo dependesse da sua actuação e não houvesse um conjunto de factores externos a intervir nos seus resultados. A mesma perspectiva parece estar na base da actual proposta de avaliação dos docentes. Tendo em conta, na avaliação do seu desempenho, a avaliação dos alunos, esquece-se que a actuação do professor está longe de ser o único factor ou sequer, em alguns casos, o factor decisivo na avaliação dos alunos e, por outro lado, esta intromissão da avaliação dos alunos na avaliação dos docentes vem promover a falsificação dos resultados da avaliação dos alunos. Não é possível entender a escola como uma empresa cuja produção depende simplesmente da sua actuação e do seu desempenho. Uma escola é uma organização bem diferente de qualquer outro sistema empresarial porque lida directamente com pessoas e com contextos sociais muito diversificados. Só uma actuação conjunta e convergente de todos os intervenientes pode levar a escola a atingir os objectivos por todos desejados, ou seja, o sucesso escolar de todos os alunos. Certamente que tal não se consegue fazer contra os principais intervenientes, ou à margem deles; só chamando todos a colaborar para a consecução deste desígnio é que os problemas podem encontrar soluções adequadas.
Mas as convulsões no sistema de ensino não nos podem fazer perder de vista os problemas relacionados directamente com a disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica. Desde há alguns anos que a Comissão Episcopal da Educação Cristã tem vindo a interpelar o poder político para estas questões. As respostas têm sido poucas e tímidas. No momento actual, em que a Conferência Episcopal Portuguesa investiu recursos na reforma do programa de Educação Moral e Religiosa Católica e dos materiais didácticos de apoio aos alunos e aos professores, parece que algumas forças, com capacidade de intervenção, pretendem que a disciplina e os seus docentes retrocedam ao tempo em que não havia legislação específica.
Apesar de tudo, devemos acreditar no futuro. Sem esperança e abertura para dialogar não poderíamos responder ao desafio da própria fé cristã. E o futuro absoluto é de Deus.
Jorge Paulo, Coord. Dep. EMRC do SNEC
(1) CEP. 2008. Carta Pastoral "A Escola em Portugal. Formação Integral da Pessoa Humana".
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