Dossier

A importância de umas palavras

Pedro Vaz Patto
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Pedro Vaz Patto, Comissão Nacional Justiça e Paz

Será assim tão importante que da futura Constituição europeia conste uma menção explícita ao cristianismo? Não será esta uma questão puramente formal? Com a elaboração desta Constituição, a União Europeia vive um momento que pode considerar-se fundacional. Nestes momentos, há que reflectir sobre os alicerces em que assenta este projecto, sobretudo se lhe dermos uma dimensão que vai para além da simples combinação de interesses económicos e políticos. Tal como a coesão e unidade das Nações depende da memória de um passado comum, assim também sucede com esta comunidade de Nações que pretende ser a Europa. Essa coesão e essa unidade tornam-se particularmente necessárias em relação ao projecto da unidade europeia, um projecto inédito de conjugação de diversidades nacionais em função de um bem comum mais amplo, um projecto que ainda não colheu a adesão popular que seria desejável. Para fortalecer essa coesão e essa unidade, é bom ter a consciência clara de que a Europa não se constrói a partir do nada, fazendo tábua rasa do seu passado. Em suma, não podemos saber para onde vamos sem saber quem somos. Por outro lado, os textos constitucionais contêm, com frequência, referências solenes a estes alicerces do projecto a que pretendem dar origem, a este contexto histórico-cultural donde brota tal projecto. Essas referência têm um alcance simbólico que vai para além da simples retórica e são uma referência para as gerações vindouras. O caso da Constituição norte-americana, cujo texto ainda hoje serve de referência na definição da própria identidade norte-americana, é, a este respeito, paradigmático. A referência ao cristianismo justifica-se porque a unidade cultural europeia não se compreende sem o seu contributo decisivo. Mas também porque são valores que encontram a sua raiz no legado cristão (como os da dignidade da pessoa humana, da solidariedade e da fraternidade universal), valores partilhados hoje por europeus das mais diversas convicções, que devem inspirar o futuro do projecto da unidade europeia. Há que reconhecer que o texto final do preâmbulo do projecto de Constituição europeia apresentado pela Convenção representa um progresso em relação a textos anteriores. Esse texto faz referência à «herança cultural, religiosa e humanista da Europa» (quando, na sequência de um debate semelhante, a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais alude apenas a um vago «património espiritual»). Afirma que os valores decorrentes dessa herança «permanecem presentes no seu património» (não se trata, pois, de uma simples memória histórica europeia) e «ancoraram na vida da sociedade a sua percepção do papel central da pessoa humana e dos seus direitos invioláveis e inalienáveis, bem como do respeito do Direito» (é clara, pois, a ideia de que estes valores têm uma raiz histórica nessa herança). A versão anterior desse preâmbulo, a propósito dessa herança, omitia a referência explícita ao cristianismo, ao contrário do que se verificava com os contributos das civilizações grega e romana (o que não se compreendia, desde logo porque não é nestas, antes da sua assimilação posterior pelo cristianismo, que encontra raiz o valor da dignidade da pessoa humana, por exemplo) e da filosofia do iluminismo (cujos princípios não são plenamente consensuais, pois a par de aspectos inegavelmente positivos, para muitos há aspectos negativos desta corrente que poderão estar na origem do próprio totalitarismo). A versão actual elimina qualquer destas referências, mantendo, porém, a omissão da referência ao cristianismo. Corresponde a uma espécie de consenso pela negativa, que não é o ideal, porque pouco claro e inequívoco. Mantêm-se um inexplicável receio de afirmar uma evidência histórica. Seria preferível reconhecer o contributo particular do cristianismo sem excluir o contributo de outras correntes de pensamento e outras religiões. Uma pergunta se impõe. Porquê este receio? Por um lado, talvez porque permanece forte a influência de correntes que confundem laicidade e neutralidade confessional do Estado com laicismo e hostilidade do Estado com a religião e o seu papel histórico e sócio-cultural. Mas talvez também porque ainda não é claro para muitos que o reconhecimento das raízes cristãs da cultura europeia é algo de que não devem ter receio os não cristãos. Não se trata de uma opção conflitual contra estes, presentes na Europa (cada vez mais, devido à imigração) ou fora dela. Reconhecer essas raízes é, como sempre tem afirmado João Paulo II, uma responsabilidade (para todos os cristãos, antes de mais) que leva a assumir coerentemente valores como os que acima referimos, em que muitos não cristãos se reconhecem. Leva a assumir, designadamente, os valores da fraternidade universal e do diálogo entre culturas (sendo certo que as culturas só podem dialogar de modo frutuoso quando é clara a consciência da sua própria identidade). A esta luz, penso que o simples facto de um Estado europeu ter uma população maioritariamente muçulmana não deve ser obstáculo à sua adesão à União Europeia (adesão que será, de resto, uma garantia de respeito pela liberdade religiosa nesses Estados). Num breve balanço do projecto de Constituição em apreço, para além desta questão, há que destacar o facto de o seu artigo 51º dar o devido relevo à dimensão comunitária e institucional da liberdade religiosa, estatuindo que a União Europeia respeita os estatutos de que as Igrejas e comunidades religiosas beneficiam à luz das várias ordens jurídicas nacionais e prevendo a instituição de um diálogo regular entre elas e a União Europeia (sendo certo que, numa solução de compromisso, também aqui presente, se equiparam essas instituições às «organizações filosóficas não confessionais», as quais, obviamente, e em rigor, só até certo ponto a elas são equiparáveis). Respeitar os estatutos de que beneficiam as instituições religiosas nas várias ordens jurídicas nacionais afasta os perigos de uma qualquer pretensão legislativa europeia invadir domínios relativos às especificidades da organização interna dessas instituições ou afectar relações de autonomia recíproca e sã colaboração cujo equilíbrio e fecundidade já foram demonstrados pela história das várias Nações europeias. Prever a institucionalização de um diálogo regular entre a União Europeia e as várias instituições religiosas significa que as instituições políticas europeias não ignoram o contributo social (não meramente privado) específico das instituições religiosas (designadamente, na educação, na difusão de valores éticos e na humanização da sociedade em geral). Esse diálogo deixa de ser uma opção facultativa e passa a ser uma verdadeira obrigação. Pedro Vaz Patto, Comissão Nacional Justiça e Paz


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