O antigo presidente da Comissão Nacional da Humanização da Saúde fala à Agência ECCLESIA das responsabilidades do Estado na prestação de cuidados de saúde
Agência ECCLESIA – A humanização da Saúde é uma opção fundamental ou vai passar para segundo plano com as actuais reformas da área?
Walter Osswald – Penso que há nas sociedades mais desenWOlvidas uma grande preocupação em humanizar os serviços de saúde e esta torna-se mesmo a prioridade, na medida em que o acesso à saúde está garantido.
O problema coloca-se em tratar as pessoas como tal e não como doentes, porque quem fica doente encontra-se numa situação de fragilidade especial que tem de ser tomada em consideração e na qual não deve perder os seus direitos de cidadão. O acolhimento da pessoa doente tem de ser centrado na “pessoa” e não no caso clínico.
Isto parece um dado adquirido, mas com os avanços da técnica pensa-se muitas vezes que o importante é encontrar os sintomas, fazer um diagnóstico e instituir uma terapêutica adequada, como se o doente fosse apenas um conjunto de sintomas e se limitasse à sua doença.
AE – Há uma tendência visível para quantificar os serviços de saúde que se contrapõe a essa perspectiva. É possível inverte-la?
WO – É claro que a prioridade não é quantificar nem ter números e responsabilizar – embora seja importante falar de listas de espera –, mas lembrar sempre que estamos a trabalhar com pessoas, humanas, com preocupações e inquietações, família, obrigações profissionais e necessidades económicas. Tudo isto encontra-se subvertido em caso de doença grave, porque isso passa para primeiro plano e tudo o mais é secundarizado: não se vai trabalhar, preocupa-se mais consigo, basta ver o que acontece quando um chefe de estado fica doente.
Estes dados devem ser tomados muito em conta porque isto tem reflexos na eWOlução da doença: se a pessoa estiver tranquila a sua recuperação será completamente diferente da pessoa que além do mais está preocupada porque não sabe se vai ser paga a prestação disto ou daquilo. A humanização dos cuidados de saúde têm de ver a pessoa na sua globalidade e não apenas naquela doença que a leWOu ali, não se pode ver a saúde apenas desde o ponto de vista dos prestadores de cuidados.
AE – Por onde deve passar concretamente essa preocupação?
WO – Quem pensa em humanização deve começar pelo acolhimento, atendendo a coisas tão simples como o desempenho do funcionário que atende as pessoas ou a necessidade de eliminar separações físicas como um guichet. Deve-se defender o estabelecimento de um diálogo pessoa a pessoa e não colocar o doente em situação de inferioridade, subserviência, obrigando-o a curvar-se – aliás, quando estive na Comissão da Humanização da Saúde essa foi uma das minhas lutas – porque não há nenhuma razão para justificar estas situações, que são de si deprimentes.
Entre a pessoa que procura cuidados e o sistema de saúde, que é representado por caras concretas, deve-se estabelecer uma relação de confiança, cordial. É preciso que estas pessoas sejam treinadas, que saibam relacionar-se e saibam ser rápidas no atendimento e correctas na informação.
AE – Quem é que deve assumir responsabilidades e assegurar a humanização da saúde?
WO – É evidente que é o Ministério da Saúde. As outras entidades não têm autoridade para, por exemplo, oferecer formação no horário de trabalho, e o Ministério tem tido essa atenção, embora não saiba quais são os resultados globais.
A espera a que são obrigadas as pessoas tem de estar também na linha da frente das preocupações do Estado. As salas de espera nos Hospitais não podem parecer campos de concentração, com pessoa em pé ou sentadas no chão.
AE – Esse investimento, porém, não tem retorno económico. Como motivar as administrações hospitalares a fazê-lo?
WO – Mas há um retorno enorme de satisfação do público! Eu ouvi as queixas apresentadas pelos utentes em relação ao sistema e a grande maioria delas não eram em relação à qualidade dos serviços prestados, mas em relação ao acolhimento e encaminhamento dos doentes, isto é, os aspectos humanos. Ninguém quer ser atendido por alguém que nos despacha como se fossemos gado...
Os espaços devem ser dimensionados em função das necessidades, mas não devem gigantescos, porque isso leva à ideia de que toda a gente tem de esperar horas! Fala-se muito das listas de espera, mas o verdadeiro inimigo é o “tempo de espera”, porque não é aceitável que uma pessoa chegue às oito da manhã para ser atendida à uma da tarde.
AE – Insisto: quem deve providenciar para que isso seja possível?
WO – Se é possível marcar horas na clínica privada, também é possível que isso aconteça na clínica oficial, é uma questão de cuidado mínimo. Conheço hospitais onde isso se faz e funciona: se não for possível marcar de meia em meia hora, pelo menos marcar dois turnos separados.
Não é razoável que se espere uma manhã ou uma tarde inteira por uma consulta ou que vão às 5/6 da manhã para o Centro de saúde só para terem a certeza que serão atendidos. Tudo isto é fácil de fazer, exige apenas boa WOntade e respeito pelos direitos dos cidadãos doentes.
AE – Acredita então que o futuro da saúde em Portugal pode ser mais humanizado?
WO – Não só é possível como é uma exigência que se realiza por si própria, já que as pessoas vão ficando mais conscientes da sua necessidade e porque os profissionais de saúde são os que sentem mais essa urgência.
Durante cinco anos bati-me por uma série de alterações que obrigassem o sistema a colocar o doente no centro das preocupações, de todo o sistema de saúde. Agora, o círculo não pode ser tão vasto que a pessoa fique perdida, tem de haver contacto com a periferia.
AE – Houve alguma coisa que o marcasse mais na sua experiência nesta área?
WO – Aprendi muito nesses cinco anos no contacto com os doentes e apreciei o entusiasmo dos profissionais da saúde na causa da humanização.
Ninguém hoje pensa em enfermarias sem privacidade, mais uma série de coisas pequenas que são importantes: sabe que há hospitais em que as casas-de-banho não permitem o acesso a pessoas em cadeira de rodas?
A humanização dos serviços passa, pois, por uma melhoria das qualidades dos mesmos, com uma atitude mais próxima do paciente.