Dossier

A (in)Oportunidade de um referendo

Pe. Lino Maia
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1. No dia 11 de Fevereiro, em referendo, o povo português é chamado a pronunciar-se se concorda ou não “com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizadoâ€. Se, na última década, alguma vez deixou de ser tema de debate, a questão do aborto é recolocada na ordem do dia. 2. Reaparecem e proliferam “teses consistentes†e “sentenças doutasâ€. Para todos os gostos e feitios, evidentemente… Uns voltam a insistir que é um referendo inútil, uma perda de tempo que favorece a crispação que seria evitada se a actual lei fosse aplicada ou a decisão fosse restringida ao âmbito da Assembleia da República, enquanto outros recordam que aquilo que em referendo é recusado só em referendo poderá ser permitido. Uns recordam que o “simâ€, finalmente, nos põe a bater ao ritmo da Europa, enquanto outros reafirmam que não está no abandono dos valores que professam que o velho Continente sobreviverá. Uns voltam a dizer que o “sim†no referendo é um sim à liberalização do aborto, enquanto outros advogam que apenas em causa estará a despenalização da mulher que aborta. Uns insistem em que o “sim†é um grave atentado à vida, enquanto outros reduzem a questão ao direito da mulher decidir sobre a sua vida íntima. Uns advertem com redobrada força que o “sim†vai permitir o negócio lucrativo para sentenciar e executar a morte em mansões de luxo, enquanto, uma vez mais, outros desfraldam a bandeira do fim do aborto no “vão de escadaâ€. Provavelmente, falam mais eles, os homens, do que elas, as mulheres. E eles talvez descansem no dia do referendo para que elas votem, porque, pensam eles, já cumpriram o seu papel e afinal essa é uma questão delas… Parece claro: se em causa está a liberalização do aborto o sim é uma estultice, porque a vida não se discute, antes deve ser favorecida com todo o engenho, dedicação, meios, condições e arte para o seu pleno desenvolvimento e para a sua plena expressão. Se o sim apenas legalizará a descriminalização do aborto, será essa, certamente, uma questão com problemáticos contornos porque nem tudo o que é legal será moral e… que seria então crime se crime não fosse impedir que uma vida, uma vez iniciada, irremediável e definitivamente se pudesse exprimir e desenvolver? Se em causa está que o sim apenas significará o não julgamento e a não penalização pública da mulher que abortou, muitos e muitas, provável e legitimamente, cederão, porque ninguém advogará o enclausuramento ou o apedrejamento da mulher que abortou, como também ninguém esperará que alguma mulher use como sua coroa de pública glória um aborto que privadamente realizou ou reivindicou… E todas e todos sabem como é importante para a mulher conceber, gerar e dar à luz: ela encontra-se na sua grandeza quando descobre que concebeu, perspectiva-se na sua plenitude quando acaricia no ventre aquele que sonha erguer e diviniza-se quando amamenta aquele que é o seu enlevo. E todos e todas, ou quase, sabem que a mulher que por circunstâncias penalizantes abortou transporta no seu seio a cruz de uma glória sonhada e irremediavelmente desfeita. E todas, mas nem todos, sabem que esta questão, provavelmente mais do que todas as outras, é uma questão de mulheres e de homens. 3. Sendo a actividade das Instituições de Solidariedade e dos seus dirigentes uma actividade de pessoas, com pessoas e para pessoas e tendo essas instituições e esses dirigentes por único lucro da sua actividade o sorriso de esperança das pessoas, nem podem nem devem estar à margem de um debate que, muito mais do que qualquer outro, interessa a todas as pessoas, homens e mulheres, crentes e não-crentes... O referendo é uma realidade. Porém, como nem sempre as palmas premiarão os melhores ou as vaias abafarão somente os vencidos, não é o resultado do referendo a dar ou a tirar bondade à iniquidade ou àquilo que todos devem reconhecer como, efectivamente, mau… Mas vote-se e vote-se em consciência. Sem slogans estéreis mas com consciência formada. Votem todas as mulheres e votem todos os homens. E, serenamente, sejam lidos os resultados. Sem hossanas e sem cinzas. E que, decididamente, sem mais referendos do género mas com mais determinação e justiça se caminhe para um amanhã mais feliz para todas e para todos. E, convictamente, se assumam os ideais, as causas e as realizações humanas como humanas que o são, de mulheres e de homens. E, doravante, condenem-se as situações de mulheres que são vitimadas ou condenadas a, sozinhas, transportar um filho que o é também de um pai. E, ousadamente, saibamos criar condições para que o aborto, legal ou imoral, jamais seja encarado como método de normal contracepção. E que não haja nem sequer mais uma mulher que seja coagida a encarar um aborto para assegurar um emprego ou uma vitória. E que as políticas tenham sempre um tom mais familiar que economicista. E que a educação seja mais da pessoa do que para a tecnologia, mais integral do que experimentalista. E que a vida seja sempre o fervor dos que vivem… com engenho, arte e sentido de mistério. Porque a vida é tão misteriosa que merece uma permanente postura de encantadora sedução… Entretanto, as Instituições de Solidariedade, com redobrada determinação, continuarão a defender a vida e a criar condições de plena vida e de plena expressão da vida. Para todos os entes gerados e para todas as pessoas geradoras. Independentemente das suas opções e dos seus actos. Mas considerando que no abraço dos homens e das Instituições há sempre desafio para se assumir a vida e nem sempre aplauso por actos de um caminho nem sempre recto… Lino Maia Presidente da CNIS


Aborto