Dossier

A Liturgia 40 anos depois

D. José Cordeiro
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No quadragésimo aniversário da promulgação da Constituição sobre a Liturgia, Sacrosanctum Concilium, o Papa João Paulo II escreveu: «Que é a Liturgia senão aquela fonte pura e perene de “água vivaâ€, da qual cada pessoa sedenta pode haurir gratuitamente o dom de Deus (cf. Jo 4,10)? Verdadeiramente, na Constituição sobre a Sagrada Liturgia, primícia daquela “grande graça de que a Igreja beneficiou no século XXâ€, o Concílio Vaticano II, o Espírito Santo falou à Igreja, não cessando de orientar os discípulos do Senhor “para a verdade total†(Jo 16,13)»1 . Em 1985, aquando da celebração do Sínodo extraordinário dos Bispos sobre o balanço dos 20 anos do II Concílio Ecuménico do Vaticano, os Padres sinodais afirmaram claramente que «A renovação litúrgica é o fruto mais visível de toda a obra conciliar». Hoje, à distância de 40 anos da conclusão do grande evento conciliar e dos 42 anos da Sacrosanctum Concilium verifica-se que, a liturgia viveu, depois do primeiros anos da reforma litúrgica, uma fase de crise, dominada pela perda de entusiasmo, desencantada por não obter rapidamente os resultados que se esperavam em relação aos generosos esforços iniciais. Talvez se esperasse da reforma litúrgica uma “utilidade†pastoral, que não lhe correspondeu, porque «A liturgia, de facto, não é um instrumento de pastoral, mas acção pastoral mesma da Igreja no seu núcleo e na sua fonte, isto é, o lugar de encontro santificante dos homens e glorificante do Pai mediante Jesus Cristo no Espírito Santo»2 . Após uma recuperação do encanto e da beleza da liturgia, vive-se actualmente o tempo da pastoral e da espiritualidade litúrgicas. Pode-se, portanto, articular em cinco períodos estes 42 anos da reforma conciliar, a saber: 1)entusiasmo, 2)desencanto, 3)recuperação, 4)pastoral litúrgica, 5)espiri-tualidade litúrgica. Nos anos 60 viveu-se o enorme entusiasmo da aplicação da reforma da liturgia, nos quais se destacou: a abertura da liturgia às línguas vernáculas, o papel relevante atribuído às Conferências Episcopais; a restauração da concelebração e da comunhão sob as duas espécies; a simplificação do Ofício Divino; as perspectivas missionárias que as possíveis adaptações oferecem; a preferência do termo unção dos doentes ao antigo de extrema unção; o anúncio de que é possível reformar toda a liturgia; o ênfase ao mistério pascal; a participação dos fiéis; a dignificação do culto. Os anos 70 assistiram a um desencanto na recepção da reforma devido à renovação não suficientemente preparada, permanecendo a reforma no exterior. Acresce ainda: a fixação das celebrações e a publicação dos livros litúrgicos; o crescimento rápido da secularização da sociedade; a crise dos sacerdotes. Nestes anos, ao ver que a Liturgia não resolvia todos os problemas de fundo, a preocupação pastoral voltou-se para a evangelização. A recuperação opera-se nos anos 80. Uma reorientação litúrgica favoreceu a procura de um novo estilo de celebração. A relação celebração-evangelização tornou-se mais dinâmica e conciliatória. A pastoral Litúrgica salienta-se nos anos 90. Existe uma plena sintonia com os novos Ordines e um renovado interesse pela Palavra de Deus3 . Surgiram os novos Lec-cionários com um dinamismo vital, «Aquilo que se escuta na acção litúrgica se actue depois também na própria vida»4 . Sublinhou-se o Domingo como a festa primordial. A nova evangelização tornou-se uma prioridade. O valor da Liturgia das Horas foi considerado com maior destaque, bem como a experiência do silêncio na oração. No limiar do terceiro milénio apela-se à espiritualidade litúrgica, formulando-se este voto: «Que neste início de milénio se desenvolva uma “espiritualidade litúrgicaâ€, que leve as pessoas a tomarem consciência de Cristo como primeiro “liturgoâ€, que não cessa de agir na Igreja e no mundo, em virtude do Mistério pascal continuamente celebrado, e associa a Si mesmo a Igreja para louvor do Pai, na unidade do Espírito santo»5 . As realidades fundamentais para a espiritualidade litúrgica, operada pelo renovamento litúrgico do II Concílio do Vaticano, são: o uso dos salmos, a frequência da leitura da Bíblia como lectio divina, a experiência de uma assembleia orante, a consciência e a familiaridade com os grandes textos dos Padres da Igreja e dos escritores eclesiásticos... Restam, contudo, grandes trabalhos a realizar. O prosseguimento da séria investigação bíblica e teológica sobre os temas atinentes à liturgia (lex orandi) será, certamente, um apoio precioso para o desenvolvimento e a consolidação da mesma sempre a renovar no espírito e na prática concreta. No futuro, o problema em aberto é o da inculturação litúrgica em ordem a uma verdadeira identidade de cada Igreja particular. Pe. José Cordeiro Liturgista Notas 1 João Paulo II, Spiritus et Sponsa 1. 2 T. GARRIGA, «La sacra liturgia, fonte e culmine della vita ecclesiale», in R. FISICHELLA (ed.), Il Concilio Vaticano II. Recezione e attualità alla luce del Giubileo, Edizioni San Paolo, 2000, 59. 3 Cf. SC 35. 4 Ordenamento das leituras da Missa 6. 5 JOÃO PAULO II, Spiritus et Sponsa 16.


Concílio Vaticano II