Dossier

A Paixão de Cristo Vista pelo Cinema

Francisco Perestrello
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Francisco Perestrello, Director do CINEDOC

Desde as suas origens que o Cinema se tem preocupado com a Vida de Cristo, dando particular relevo à narrativa da Paixão. Trabalho difícil, uma vez que reduz a imagens de natureza puramente material, não só a figura histórica mas também a dimensão divina. Apenas o espectador estará apto, e só se as imagens forem tratadas de forma adequada, a transpor o material para o sobrenatural, em função da sua fé. O Cinema nasceu, oficialmente, em 1895. E apenas dois anos mais tarde já a Sociedade Lumière produzia uma obra sobre a Vida de Cristo, com especial incidência na Paixão. Chamava-se «Vues Représentant la Vie et Passion de Jésus Christ» e, na primeira parte, tinha a duração de 15 minutos, 50% mais do que era então habitual. A dimensão da obra, que prendia cobrir o percurso desde os Reis Magos até à Ressurreição, levou a que fosse concluída, bem mais tarde, pela produtora de Georges Halot. Ao longo de mais de um Século sucederam-se os trabalhos sobre a Vida de Cristo, de forma geral dando relevo à Sua bondade e a todas as vertentes que realçam o amor. Mas, sendo forte a influência do romantismo americano, raramente se atingia um impacto que fizesse esquecer o tom excessivamente melodramático, em que muitas vezes se fugia ostensivamente ao texto dos Evangelhos para ganhar em emoção e, portanto, em adesão do público. Tal não impede que, de permeio, alguns trabalhos se tenham revelado eficientes. Ultrapassados os métodos de grande produção das versões sob o título «O Rei dos Reis», de Cecil B. De Mile (1927) e de Nicholas Ray (1961), veio a surpresa pela mão de Manoel de Oliveira, que em 1962 realizou «O Acto de Primavera». Trata-se de um documentário sobre a Paixão, tal como é representada pelo povo de uma aldeia do interior de Trás-os-Montes. O povo abandona, por algum tempo, a sua vida quotidiana para uma dedicação total à representação da Paixão de Cristo. Um filme sincero, despido de qualquer artificialismo, que nos deixa um retrato de grande vivacidade sobre a população local e a sua entusiástica adesão ao Acto da Semana Santa, a que se segue o retorno à vida modesta que caracteriza a generalidade dos meses do ano. Foi pouco mais tarde que se produziu uma obra de verdadeiro impacto internacional. Não sobre a Paixão em particular, mas sobre a vida de Cristo no seu todo. O realizador poderia parecer o menos indicado, mas coube a Pier Paolo Pasolini – ateu e marxista confesso – a responsabilidade de levar a bom termo «O Evangelho Segundo S. Mateus». Uma vez mais o principal valor da obra proveio da ausência de grandes meios ou grandes artificialismos. Com uma fotografia a preto e branco, esbatida, sem fortes contrastes, e um conjunto de actores na sua maioria não profissionais, o filme assume-se como uma obra espartana em que Cristo nos aparece em toda a sua força, sem que se limem arestas dos modos de um homem de origem modesta. Poder-se-á dizer que incide mais sobre o homem que sobre o Homem, o que levou a críticas de que foi pouca a atenção dada à componente espiritual, mas esta está presente e é passível de ser apreendida por qualquer espectador atento. Muitas outras obras se produziram sobre Cristo, mas de forma geral ou caíam na já referida enfabulação do contexto ou traziam intenções provocatórias, como foi o caso de «A Última Tentação de Cristo», que Martin Scorsese realizou em 1988 seguindo um projecto dinamarquês que foi frustrado por falta do desejado apoio estatal. Houve trabalhos de inegável valor, mas que não encontraram a desejada divulgação, ficando o seu conhecimento limitado a uma gama de público muito específica. É o caso de «Jesus», de Peter Sykes e John Kirsh, obra com o rigor que lhe foi transmitido pela forte presença do britânico John Kirsh. Mas foram muitas as outras produções sobre Cristo e sobre o cristianismo que povoaram a História do Cinema e, mesmo que se lhes não possa assacar a mesma qualidade e exactidão, partiram, em muitos casos, de boas intenções. Desde «A Túnica» a «Quo Vadis?», repetiram-se os filmes que povoaram o imaginário dos espectadores. Franco Zeffirelli, por exemplo, foi autor de uma narrativa de grande beleza, num longo filme, distribuído em duas partes distintas, totalizando mais de três horas de projecção, aumentadas em Itália para o dobro para apresentação sob a forma de mini-série. Em todos eles Jesus Cristo é apresentado com grande dignidade, mas a maior parte das vezes ficando muito longe da Sua imagem real. «A Paixão de Cristo», de Mel Gibson, pelo realismo e objectividade em que se suporta, veio acrescentar um ponto essencial ao percurso cinematográfico da Vida de Cristo. Francisco Perestrello, Director do CINEDOC


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