Dossier

A Paixão do Messias

Pe. Joaquim Carreira das Neves
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Pe. Joaquim Carreira das Neves, Professor de Teologia

O filme, A PAIXÃO DO MESSIAS, de Mel Gibson, em perspectiva bíblica - a única sobre a qual emito parecer – oferece-me duas atitudes de juízo: uma mais positiva e outra menos positiva. A mais positiva consiste na apresentação da realidade duma crucifixão. Que saiba, nunca até hoje alguém apresentou de modo tão realista uma crucifixão. Todos sabemos que se tratava duma instituição com origem no império persa, usada, depois, pelo império helénico e romano. Os judeus conheciam bem os horrores de semelhante instituição, de tal modo que na própria Bíblia quem assim morria era tido por amaldiçoado de Deus, e “não podia permanecer de noite na cruz para não manchar a terra que o Senhor Deus deu em herança a Israel” (Deuteronómio 21, 23). A crueza das cenas da crucifixão de Jesus, neste filme, corresponde à crueza da realidade. Assim foi com Jesus como foi com milhares de crucificados no tempo dos persas, gregos e romanos, embora Mel Gibson acentue, de maneira desmesurada, a realidade cruenta de tal Paixão. Desde há séculos que se discute sobre a responsabilidade de quem mandou crucificar Jesus. Os evangelhos são claros em afirmar que a última palavra coube a Pilatos, mas que a penúltima se deveu ao Sinédrio judaico. Jesus era um judeu, e foi julgado, ao longo da sua vida, pelas autoridades judaicas como blasfemo. Segundo as leis judaicas, os “blasfemos” deviam ser erradicados de entre o povo, mortos por lapidação (Levítico 24, 13-16: “O Senhor falou assim a Moisés: ‘Faz sair o blasfemo para fora do acampamento: todos os que o ouviram imponham as mãos sobre a sua cabeça, e que toda a comunidade o apedreje. (...) Aquele que proferir blasfémias contra o nome do Senhor, será punido com a morte e toda a comunidade o apedrejará. Quer seja estrangeiro quer seja natural do país, se proferir blasfémias contra o nome do Senhor, será morto”). Na realidade, havia mais que razões para as autoridades judaicas julgarem Jesus como blasfemo, se confrontado com a ortodoxia da lei judaica. As afirmações de Jesus sobre o sábado, Templo, Moisés, Abraão, perdão dos pecados, comensalidade com pecadores, autoconsciência de Messias e Filho do Altíssimo (Marcos 14, 61-62), eram a prova comprovada duma atitude de blasfemo segundo os critérios da ortodoxia judaica. O mesmo aconteceu com Estêvão (Actos dos Apóstolos 7, 54-58). Há, pois, dois dados históricos, de historiografia factual, que emolduram a paixão-crucifixão de Jesus: 1) Jesus condenado pelos judeus como blasfemo, e 2) Jesus crucificado por Pilatos. Segundo os dados bibliográficos e históricos (Talmude, Flávio Josefo), o Sinédrio não podia julgar à morte nenhum judeu no dia de sábado, nas vésperas das festas judaicas, nem depois do sol se pôr. Neste particular, a atitude dos sumos sacerdotes Anás e Caifás, de acordo com o quarto evangelho, corresponde com a verdade “histórica”, ao contrário dos evangelhos sinópticos, já que o Sumo Sacerdote “interrogou Jesus acerca dos seus discípulos e da sua doutrina” (Jo 18, 19). E nada mais se diz, a não ser que Anás “mandou-o manietado ao Sumo Sacerdote Caifás [de quem Anás era sogro] que, por sua vez, o entregou ao governador romano” (18, 28). Não se trata dum julgamento em tribunal “oficial”, porque esse julgamento já estava há muito decidido. Neste sentido, cada evangelista apresenta a paixão do Messias à sua maneira, mas tendo sempre em conta as duas realidades históricas: Jesus como blasfemo perigoso, pela parte dos judeus, e Jesus como possível perigo para a pax romana, pela parte de Pilatos. A partir destes dados, as personagens que aparecem na paixão do Messias – sumos sacerdotes, Pilatos, soldados romanos, Pedro, mulheres junto à Cruz, mulheres que acompanham Jesus (só em Lucas 23, 27-31), Barrabás, cireneu, os dois malfeitores – são ao mesmo tempo históricas e funcionais. Os evangelhos, quando foram escritos, são, ao mesmo tempo, história e catequese cristã. Assim se explica que os enunciados, no tribunal romano com Pilatos, divirjam tanto entre os sinópticos e o quarto evangelho. Assim se explica que as palavras de Jesus na Cruz divirjam, igualmente, nos quatro evangelistas. Finalmente, também se explica, desta forma, que os evangelhos apresentem a figura de Pilatos a tentar livrar-se desta condenação e o centurião “romano” a confessar Jesus como Filho de Deus (Lucas 23, 47 e paralelos). A atitude menos positiva consiste no facto do filme apresentar uma crucifixão de tradição não apenas evangélica, mas também da Igreja Católica. A presença contínua da mãe de Jesus é tradição da Igreja Católica. Não aparece nos evangelhos sinópticos, ao contrário de outras mulheres (Marcos 15, 40-41 e paralelos). A cena da mãe de Jesus junto à cruz, apenas no quarto evangelho (Jo 19, 25-27) é uma cena teológica e eclesiológica e não de história factual. O desempenho da mulher de Pilatos, tão acentuado no filme, pertence apenas a uma breve pincelada do evangelho de Mateus (27, 19) com fim apologético. E a grandiosidade das cenas – é, realmente, um filme grandioso – à volta da crueza de tanto sofrimento, sangue e martírio, pode conduzir a uma teologia martirial em que a objectividade exterior oculte a verdadeira realidade daquela crucifixão como metáfora viva da obediência, livremente aceite, do Messias, que se entrega – ele mesmo – ao mistério da salvação segundo o modelo profético do Servo de Deus de Isaías 53. Mel Gibson é um católico romano e tem todo o direito de apresentar a sua “Paixão do Messias”. Para montar, em cinema, a sua Paixão do Messias, escolhe sobretudo o evangelho de João, mas mistura-o também com a tradição, muito variada na apresentação das personagens, dos sinópticos. Os católicos têm a tradição religiosa da chamada “Via Sacra” com 14 estações e, dentre elas, as três quedas de Cristo, a presença materna da Mãe de Jesus e a presença amiga da Verónica. Os evangelhos não apresentam nem as três quedas, nem a mãe de Jesus, nem a Verónica. Mas os mesmos evangelhos não podem ser vistos como uma crónica dos acontecimentos. A piedade cristã – uma vez que se trata da Paixão do Messias, Filho de Deus e Deus com Deus – tem todo o direito a “emoldurar” esta Paixão com personagens “adventícias” à mesma Paixão, mas significativas e icónicas. Mel Gibson vai muito além da tradição clássica da “Via Sacra” da tradição católica. Em conclusão, A Paixão do Messias de Mel Gibson está de acordo com os traços fundamentais dos quatro evangelhos, com as declarações do Antigo Testamento sobre os judeus “blasfemos” e sobre a “maldição” dos crucificados, mas também de acordo com as posições religiosas do autor, como católico, que ultrapassam os dados bíblicos e se enquadram na tradição histórica da religiosidade da Igreja Católica. Pe. Joaquim Carreira das Neves, OFM.


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