Dossier

A terra, Alvorninha, e o Patriarca de Lisboa

Pe. Ãlvaro Bizarro
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Pe. Ãlvaro Bizarro, Patriarcado de Lisboa

Aflorou-me à memória esta palavra da “Sabedoria de um Pobre†quando a Agência Ecclesia me pede que descreva a influência da origem, paróquia de Alvorninha, na vida e missão do Cardeal Patriarca de Lisboa . Há traços que o berço dá. A cultura rústica, tão boa e bela quanto outras, também os dá. Calcorrear caminhos estreitos com passos firmes, a contemplar as estrelas, norteia o olhar, aguça perguntas, adensa o mistério. Respirar o ciclo natural do arrotear e plantar, crescer e colher... é escola de simplicidade e paciência, de perscrutação do segredo que habita as coisas e as manifesta. O olhar vigilante sobre o regato que corre, a árvore que floresce e dá fruto, cultiva a adoração. A terra ensina a arte de ler. Cada coisa, cada pessoa, cada espécie é palavra. Tudo se interliga, relaciona. Tudo tem a ver com tudo, faz parte. Numa terra nada é estranho, indiferente, dum anónimo. A todos e a tudo se pertence, como lhe pertence cada coisa. Da natureza somos leitores: ao pão que cresce, ao vinho que amadurece na cepa, não se impõe o querer ou o tempo. Atende-se vigilantemente, intervém-se em resposta, antecipam-se necessidades, cuidam-se ambientes propícios. Sujam-se as mãos nas raízes, na alegria dolorosa de quem espera o fruto. Como ainda recordo o velho lagar do Pego. O cheiro do mosto nos cristais do sarro somado aos odores dos pêros ferro religiosamente dispostos sobre os fetos. ... e a grande família, à sombra do olhar profundo do “velho patriarcaâ€, longa no número, variedade, aventura e trabalho. Ensaio permanente da tolerância necessária à vida, complemento e berço de fé. Se isto marca um homem? Isto também faz um homem. Semeia desde a infância uma sabedoria, um silêncio, um abandono ao mistério que perdura pelo tempo fora. As letras, a Academia, o desenvolvimento racional dão uma luz íntima e nítida ao que já é. Transforma, plenifica-o. A Universidade, Lovaina ou Roma, onde a inteligência brilha; a Católica onde transborda, completa, eleva a outros voos, é saber que plenifica as intuições, os sabores, as emoções gestadas naquele húmus. Hoje, o regresso a casa é sacramento. Já não é a mesma. Resta ainda a velha nogueira e perduram as flores. É o silêncio procurado e vivido que repercute as decisões, as escutas diárias, o cuidado de cada ovelha. O coração do Pastor, no Pego, dá vez ao velho lagar, nele - cada padre e cada leigo, político e religioso, artista e operário, mestre e discípulo... – é fermentado em vinho novo do Espírito. O regresso a casa é o reencontro com o sangue. A diversidade de cada membro da família, a variedade dos caminhos, o encadeado das gerações é fogo que acalenta, é clamor de vida palpitante. A família, os amigos, a porta aberta, revelam a abertura do coração e oferecem uma síntese viva da Diocese a quem se dá. E o sangue comum ou amigo a escorrer das veias é memória permanente daquele derramado para uma nova família.


D. José Policarpo