Catarina Lopes - Fundação Evangelização e Culturas
Abstinência quaresmal?
- Quantas vezes comem por dia?
- Uma.
- Quando comem carne?
- Durante o choro (celebração festiva pela morte de alguém)
- Então já fazem abstinência! A abstinência significa mudar de vida, contribuir para a qualidade da vida na tabanca.
Missa na tabanca de Curene
Aproxima-se timidamente do professor, passos pequenos e lentos, olhos cabisbaixos, entregando-lhe uma moeda de 100 CFA (corresponde a 15 cêntimos), baixinho diz-lhe ao ouvido: Misti caneta (Quero uma caneta). O professor tira do armário da escola uma; o pequeno guarda-a como se de um tesouro se tratasse. A aquisição de caneta, lápis, borracha ou caderno constitui um bem precioso, de tal modo que as crianças, por vezes, embrulham os cadernos em papel de jornal para os proteger. Como não deixam de ser crianças como tantas outras, as folhas estão dobradas, pintadas de pó e nódoas, desleixes e brincadeiras próprios da idade. Entre as aulas e os recreios improvisados permanentemente, é-lhes exigido que ajudem na bolanha, no cultivo da terra: se for menina acrescenta-se-lhe o cuidado da casa. É por isso que a taxa de analfabetismo e de desistência escolar (sobretudo na 3ª e 4ª classes) sejam mais acentuadas no sexo feminino.
Mas é óbvio que quatro paredes e um tecto de zinco não fazem de uma casa uma escola; um caderno e um lápis não faz da pessoa que o possui estudante; o domínio dos livros não faz do indivíduo um professor. Quando se pensa em ajudar em África, o procedimento passa por uma listagem de materiais, sua consequente aquisição e apoio económico. No entanto, e no caso da Guiné-Bissau, o que se tem verificado é que a dádiva imediata e gratuita traz consigo mais problemas e dependências, chegando a atrapalhar qualquer possibilidade de desenvolvimento. Assim, a ajuda constitui sempre um pau de dois gumes: por um lado, necessita-se dela; por outro, a sua má gestão pode trazer mais malefícios do que potencialidades.
Afastadas da praça (da cidade), as escolas de tabanca sofrem as privacidades do interior. O isolamento geográfico, social e cultural excluem as populações do conhecimento, da vida. Conscientes das suas dificuldades (económicas, geográficas – para chegar ao liceu muitos jovens andam uma a duas horas a pé), as comunidades solicitaram o apoio das Missões, as quais em colaboração com o Ministério da Educação Guineense, regulamentaram a sua actividade educativa através de regimes de auto-gestão, procurando proporcionar a educação académica das crianças em idade escolar, privilegiando as crianças do interior, e fazer com que a educação seja uma responsabilidade de todos. Criaram-se comités de tabanca, de pais/encarregados de educação, de alunos e professores de modo a que todos reflictam sobre a auto-subsistência da escola, as dificuldades e sucessos na aprendizagem dos alunos, a formação complementar dos professores. Suplantando a instabilidade política do país, as escolas comunitárias possuem um fundo – obtido através da venda de produtos agrícolas, produzidos nas hortas da escola e da comunidade e do pagamento da propina e da matrícula trimestral. Este dinheiro permite o pagamento de um subsídio aos professores, garantindo-lhes a sua subsistência e, simultaneamente, evitando que façam greves, bem como para necessidades materiais da escola.
Na zona de Mansoa, das 8 escolas comunitárias, apenas 2 situam-se junto a estrada, as restantes exigem que se vá pequenos caminhos de difícil (quase impossível) acesso durante a época das chuvas. Alguns professores vivem nas próprias aldeias, em casas construídas pela comunidade e com o apoio da Missão, pois as distâncias revelam-se contraproducentes durante a semana. A escola mais distante do centro da cidade fica a 30 Km, sendo a mais próxima a 10 Km. Para além da distância, os professores confrontam-se com outros problemas: o da língua. A população para além de não falar o português, não domina o próprio crioulo, o que dificulta novamente o acesso às letras e aos números. A tendência neste quadro é de os jovens migrarem para o mundo ocidental mais próximo: a cidade de Mansoa ou, já mais longe, Bissau. É nesta confusão entre o tradicional e o moderno, entre a falta de estabilidade política do país e a uma descrença da própria esperança que a questão se coloca: para quê estudar?
Para muitos, a escola é uma realidade longínqua, já que as famílias numerosas não conseguem suportar as despesas. Assim entre rapazes e raparigas dá-se primazia aos primeiros; entre rapazes, geralmente o mais fraco fisicamente estuda; o mais forte ajuda nos trabalhos agrícolas.
Mas não só de pouco carece a Guiné, às vezes a ausência impõe-se com excessiva naturalidade, dificultando o ensino. Por incrível que possa parecer, não existe ardósia no território, logo não existem quadros, sua aquisição só pode ser feita no estrangeiro. Pode-se sempre improvisar, inventar metodologias de trabalho, pois djito tem qui tem (tem de haver jeito, tudo se resolve). Mas o giz gasta-se mais facilmente, a legibilidade dos primeiros contactos com as letras e os números dificultados, acentuando o desânimo das mãos habituadas ao arado, a pilar o arroz. A lista de necessidades é infindável, a filosofia de trabalho não visa a dádiva gratuita, pois a prática no terreno revela que a participação da comunidade na obtenção dos fundos produz mais frutos a médio e longo prazos.
Os conflitos de Junho de 1998 e de 22 de Novembro de 2000 aniquilaram substancialmente a esperança, a crença em melhores dias. Aqui o carpe diem (aproveita o dia) é deturpado, vive-se cada dia porque o amanhã pode não ser dia.
Catarina Lopes