Dossier

Actos e Actas

Voz Portucalense
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Não é o fim da história, mas...

Percebe-se o entusiasmo que a figura de João Paulo II está, nos últimos dias da sua vida, a despertar por toda a parte, a todos os níveis e em todos os quadrantes. Mais talvez fora da Igreja do que no seu próprio seio onde, devido à relação afectiva que nós os Católicos temos com o Papa, predomina uma certa tristeza pela sua velhice e pela sua doença tal como se tem por um pai doente e velhinho na fase terminal da sua existência neste Mundo. Percebe-se aquele entusiasmo, admiração tanto mais sincera quanto prestada ainda em vida, porque depois da morte são costume as homenagens da praxe em dossiês tirados dos arquivos e há muito elaborados. Percebe-se. João Paulo II é o último das grandes personalidades do século XX que fizeram História. Tanto mais quanto no começar do século XXI por toda a parte as mediocridades reinantes, dor de cabeça das sociedades, dos povos e nações, abundam assustadoramente em todos os domínios. Claro que ainda estamos no princípio do novo século, para se falar em “fim da História”... como fez, depois da queda do Muro de Berlim, aquele americano de nome japonês. Mas os primeiros dias do novo século são decepcionantes, decepção agravada pela constatação universalmente verificada de uma certa imobilidade do Mundo a toda a hora posta diante dos nossos olhos pelos meios de comunicação, que nunca como agora foram tantos e tão carecidos de boas e reconfortantes notícias. É próprio dos dias de provação, melhor falando, dos julgamentos históricos esta imobilidade? Como se o Mundo ficasse suspenso... João Paulo II vai ter um sucessor. Provavelmente não será João Paulo III, nem na mais auspiciosa hipótese um João XXIV. Nem sei por que os bispos de Roma, ao ser eleitos, mudam de nome. O que é que muda da sua identificação baptismal, crismal e eucarística? Já nos mosteiros e conventos, no dia da formulação dos votos solenes, os conventuais ganharam essa mania, no fundo uma sobreavaliação do seu novo estado de vida em relação ao estado-de-Graça puro e simples. Todas estas manias estão historicamente situadas e relativizadas. As mudanças e os abandonos dos anacronismos, muitos deles perfeitamente inocentes, dependem naturalmente da pessoa eleita para bispo de Roma. O que, de facto, tem acontecido uns atrás dos outros desde Pio XII que nunca aceitou ter um secretário de Estado, mas se ocupou directamente de tudo, a João XXIII que mandou recolher ao museu a monstruosa cadeira com que o elevavam e levavam aos ombros, a Paulo VI que mandou leiloar em Nova Iorque a nojenta tiara, símbolo de um poder que o Cristo Jesus nunca aceitou, até João Paulo II que abandonou, ou nunca usou, o ridículo plural majestático. Pormenores? Sim, são pormenores... significativos, cuja decisão depende do próprio, de qualquer forma. O próximo papa, neste capítulo, que fará de significativo? Abandonará o numeroso séquito que lhe prepara as viagens e lhes garante o sucesso jornalístico? E, como Simão-Pedro acompanhado de Marcos, far-se-á acolitar de um simples intérprete? Tudo isto, verdadeiramente, é secundário. E, quando muito, vale ou pode valer como um sinal. Mas há coisas, grandes mudanças na Igreja, que ainda dependem canonicamente do bispo de Roma que, na cadeira-de-Pedro, preside à comunhão das Igrejas. Razão por que ainda estremecemos à eleição papal. João Paulo II nos últimos tempos percebeu que o maior obstáculo à reunificação das Igrejas estava numa instituição histórica chamada papado, e aceitou num famoso documento discutir a forma e a prática do Primado. Só que, estranhamente, ninguém lhe pegou, tanto do lado das Igrejas em comunhão com a Igreja de Roma como do lado das Igrejas separadas. Claro que não bastava uma palavra como aquela que foi dita e escrita. Era preciso um acto, acompanhado do necessário despojamento, à boa maneira de João XXIII que, antes e durante o concílio Vaticano II, arrumou uma série da coisas... De qualquer forma, o que já é muito, muitíssimo, João Paulo II abriu o dossiê. O tempo voltará em que à eleição do bispo da Igreja de Roma, na forma consueta ou noutra forma qualquer, daremos toda a importância que ela merece, mas não mais do que isso. Porque, entretanto, a colegialidade e a comunhão das Igrejas terão libertado o Papa de uma concentração de responsabilidades e poderes que, por natureza e na boa prática da Igreja, não lhe pertencem e que, por boas ou más razões, ao longo dos últimos séculos se acumularam e concentraram nas suas mãos. O Mundo segue o seu curso, e a Igreja prossegue o seu caminho? Desde que o Cristo Jesus entrou na História – o Cristo histórico é o Cristo da Fé! – o Tempo não passou a ter dois cursos. A Igreja está no Mundo, e o Mundo está na Igreja, para o melhor e para o pior. É falsa a distinção daqueles que atribuem ao Mundo as questões temporais e à Igreja as intemporais, mas a separação da Igreja e do Estado é irreversível. Não voltam mais os reinos cristãos nem as democracias cristãs. Eu sou dos que pensam que uma referência cristã na Constituição Europeia é uma coisa anacrónica. Ninguém ganha nada com isso, até porque a Europa não é, nunca mais será, o que foi. A Europa será cristã, ou não será?!... O que foi, e o que não foi, nunca mais ninguém o tirará à história da Europa, feita e sofrida. E o que será não repetirá, em relação à Igreja, os erros da História. O Cristo Jesus passou por aqui, e aqui continua até ver. Não para aqui constituir um reino deste Mundo. Ou será que voltamos à mania judaizante da confusão messianista de Jerusalém-a-Velha? A construção da Cidade de Amanhã contará, ou não contará, o Tempo o dirá, com a Europa. Mas a Una e Santa, a Igreja Católica e Apostólica, a Semper Reformanda, já não se pensa nos termos da Europa. Leonel Oliveira, Voz Portucalense


João Paulo II