Dentro de meses - depois de cumpridas as formalidades político-diplomáticas e jurídico-constitucionais - deixará de vigorar a Concordata de 1940, tal como o Acordo Missionário, que passarão à categoria de documentos e marcos históricos. Aquela será substituída pela nova, a assinar em 18 de Maio corrente, após uma vigência de mais de 64 anos.
Atravessou, quase incólume, as vicissitudes sócio-políticas ocorridas em Portugal, ou no mundo com reflexos no nosso país. Pensemos na Segunda guerra mundial e na colonial, - com esta o termo do colonialismo e consequente independência dos novos Estados, então surgidos - no colapso do império comunista e, de modo especial, na Revolução de Abril de 1974 e a Constituição democrático-partidária a que deu lugar.
Não vou referir-me à nova Con-cordata, cujos contornos e termos exactos desconheço - escrevo na primeira semana de Maio - a não ser aquilo que a grande imprensa vai revelando, aparentemente nem sempre com clareza e exactidão. Limito-me a uma reflexão sucinta da ainda vigente por mais alguns meses, acedendo à solicitação da ECCLESIA.
A Concordata de 1940 é um elo de uma tradição, vinda dos primórdios da nacionalidade na primeira Dinastia e corres-pondeu a uma exigência de ordem pública: pretendeu eliminar ou corrigir as principais injustiças trazidas pela Lei de Separação, de 21 de Abril de 1911, imposta à Igreja e à Nação pela República turbulenta e jacobina, contra o sentir e a vontade da generosidade do Povo português, católico por tradição, formação e convicção.
É certo que já se tinham dado alguns passos - modestos e tímidos, mas significativos - no sentido de se corrigirem as injustiças mais chocantes daquele Diploma legislativo, a começar pelo reconhecimento da personalidade jurídica de algumas entidades eclesiásticas. Tal ocorreu, na República Nova de Sidónio Pais (08-12-1917), com o ministro Moura Pinto (dec. 3856, de 22-02-1918), e também Rodri-gues Gaspar (dec. 6322, de 26-08-1922).
Mas impunha-se um documento mais abrangente e negociado entre as duas Altas Partes em causa, regido pelo Direito Internacional Público, como é apanágio das Concordatas. Aquelas iam-se convencendo dessa conveniência e necessidade. Foi o que sucedeu com a assinada em 7 de Maio de 1940, nas vésperas das festivas Comemorações do Duplo Centenário.
Dotado do mesmo valor jurídico, associou-se-lhe um Acordo Missionário, peça totalmente inédita neste tipo de Diplomas ou Tratados internacionais.
Pode sintetizar-se deste modo a Concordata de 1940:
- pôs termo a uma perniciosa, incómoda e permanente situação de conflito institucional entre o Estado e a Igreja;
- não retomou a fórmula, tradicional mas inadequada, da religião do Estado, preferindo consagrar um regime de separação concertada e amigável entre este e a Igreja, introduzindo, porém, a pré-notificação oficiosa na nomeação dos bispos diocesanos;
- assinalou o facto de o catolicismo ser a religião professada pela generalidade dos portugueses, extraindo daí algumas consequências lógicas, mas nada radicais;
- corrigiu as injustiças mais flagrantes da Lei de 1911, sem a revogar expressamente, mantendo o princípio da separação, condenável tão somente porque imposto por um acto unilateral, acintoso e vexatório;
- introduziu a inovação de Concordata de Separação e Cooperação, considerada por canonistas e civilistas, nacionais e estrangeiros, documento de vanguarda para a época;
- incluiu, em anexo, a novidade do Acordo Missionário, de igual valor jurídico e político, portador de efeitos altamente benéficos para as missões do então Ultramar Português.
A Concordata não trouxe privilégios à Igreja. As disposições assim designadas por alguns críticos - especialmente as apregoadas isenções fiscais - justificam-se pela natureza dos bens em causa, como os templos e seminários, ou em compensação modesta dos usurpados pela Lei da Separação, jamais restituídos ou compensados. Quanto à propalada isenção do IRS para actividades exercidas por padres como titulares de aulas de moral e religião ou capelanias, a cargo do erário público, acentua-se que elas não constam da Concordata - nem era possível, dado aquele imposto não existir a quando da sua assinatura - mas a uma interpretação defeituosa do art. VIII, pelos Serviços, sem qualquer consulta à Igreja. Quando de tal me apercebi, chamei a atenção da CEP para o erro e propus que esta tomasse a iniciativa de chamar a atenção do Governo para ele, mas sem êxito. Foi pena!
A oportunidade e bom senso da Concordata permitiram uma vigência de 64 anos, mantendo ainda pleno vigor, com excepção do art. XXIV - que proibia o divórcio civil para os matrimónios canónico - alterado pelo Protocolo adicional, acordado pela santa Sé e Portugal, em 15 de Fevereiro de 1975.
O Acordo trouxe benéficos efeitos aos territórios e populações por ele abrangidos: não apenas na evangelização, mas na elevação e qualidade de vida daquelas, sobretudo na instrução, saúde e assistência materno-infantil, áreas primordialmente acarinhadas pelas missões. Aqueles podem apreciar-se pela comparação de alguns dados, respigados em 1940 e 1975, período correspondente aos 35 anos da sua vigência em pleno.
As Dioceses passaram de quatro para 24 - desenvolvendo-se condições para as mais 12 posteriormente criadas, estando duas outras para breve em Angola e Timor - e os católicos de menos de um milhão, representando 10% da população, para cinco, correspondentes a 33% da actual. Os sacerdotes passaram de 274 para 1216, os irmãos religiosos de 26 para 381 e as irmãs missionárias de 283 para 2115. No ensino e saúde os resultados não foram menos espectaculares. No conjunto do Continente africano a população católica ronda 15%.
A implantação da língua portuguesa, como um valor adquirido nos novos Países saídos da descolonização, deve-se mais à Igreja do que ao Estado; mais às missões e escolas missionárias rurais e mesmo urbanas, do que ao funcionalismo público de qualquer área, incluída a classe docente quase confinada à população europeia dos grandes centros.
Acordo Missionário - tal como os correspondentes artigos XXVI-XXIX da Concordata - não foi renegociado: findou a sua razão de ser com a independência, ou equivalente, das antigas Possessões ultramarinas: Goa em 1961; Angola, Cabo Verde, Guiné, Moçambique, São Tomé, em 1975; Macau em 1999; Timor em 2002. Mas seria oportuno incluir no novo texto concordatário uma disposição programática, mais ou menos do teor seguinte: “Prosseguindo uma tradição missionária multissecular de Portugal, o Governo apoiará iniciativas dos seus nacionais em actividades educativas, culturais e caritativas, em favor das populações carenciadas, no âmbito das missões religiosas, em Países de expressão portuguesa”. Fiz a sugestão em várias intervenções orais e escritas. Terá merecido atenção?
(Desenvolvi este tema em capítulos específicos de três valiosas obras sobre o momentoso assunto, recentemente publi-cadas: “A Concordata de 1940”, Lisboa, Didaskália, 1993, p. 307-323; “Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa”, Coimbra, Almedina, 2000, p. 240-254; “Relações Igreja-Estado em Portugal” Lisboa, UCP, 202, p-245-266).
+ Eurico Dias Nogueira
Arcebispo Emérito de Braga