Dossier

Agora os Tempos são Outros

Susana Cardoso
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“Agora os tempos são outros!...” Esta frase, hoje em dia, é proferida por pessoas de todas as idades e estratos sociais. Esta frase tem o poder de calar quase todas as bocas, que criticam determinados comportamentos. Os mais conservadores, deixam transparecer o seu desagrado pela actual forma de vida e também a sua saudade por tempos passados, bem diferentes dos de agora. Presentemente é-se mais feliz, ou pelo contrário? Há valores que se vão perdendo de dia para dia, porquê? Os motivos são tantos, que é difícil enumerá-los. Comecemos pela família: o amor, o respeito, a união, a compreensão, a harmonia, eram os “alicerces” da maioria dos lares, onde viviam pais, filhos e muitas vezes avós. As senhoras, as “fadas” desses lares, cuidavam da casa, das roupas, da alimentação, criavam os filhos e faziam tudo com muito amor e sem se lastimarem. Os homens, os chefes de família, saíam cedo para o trabalho, regressavam tarde e ninguém começava a jantar sem que eles chegassem. Quando metiam a chave à porta, os filhos corriam ao seu encontro, saltavam-lhes ao pescoço e enchiam-nos de beijos. As mulheres recebiam-nos com sorrisos que lhes iluminavam os rostos. Esse acolhimento, era a primeira compensação, após um longo dia de trabalho. Seguia-se o jantar. Pouco depois as crianças deitavam-se e finalmente... o melhor: o serão. Muitas famílias passavam-no junto da lareira. O avô recostava-se na sua cadeira, a mais confortável da casa, e não tardava a dormitar, a avó passajava as peúgas do marido, do genro e dos netos, a mãe fazia tricô ou croché, o chefe de família, lia o seu jornal e, por vezes, deitado numa almofada, um gato ronronava, De quando em quando, entreolhavam-se com ternura. Gerava-se então, um ambiente de bem-estar, de paz, de conforto, de “felicidade!” todos se sentiam recuperados, daquele dia de trabalho, prontos para enfrentar o que se seguia, depois de uma noite bem dormida. “Agora os tempos são outros!...” Tanto trabalham os homens como as mulheres. As crianças saem das suas caminhas quentes, para serem entregues nos jardins de infância ou escolas. Ao fim da tarde, os pais ou as mães, vão buscá-los. Do casal, o primeiro a chegar a casa, começa a fazer o jantar. Já não há “fadas do lar” a irem esperar os maridos com sorrisos a iluminarem-lhes os rostos. Tentam desdobrar-se o mais que podem, mas as “varinhas de condão”, de tão usadas, já não fazem os mesmos encantos! É que nos lugares onde trabalham, também têm que ser “fadas”... Mal os maridos metem a chave à porta, já nem digo chefes de família, porque agora qualquer deles é chefe... gritam da cozinha:- chegaste tão tarde! Olha que tens que dar banho ao miúdo, que eu estou às voltas com o jantar!... ou então:- Estou a fazer sopa, vê se vens ajudar-me a descascar as batatas! As crianças “grudadas” à televisão ou a jogar nos computadores, não ligam à chegada dos pais. Serões junto da lareira, também já são raros, assim como um avô a dormitar e uma avó a passajar peúgas... Já nem se passaja peúgas; quando se rompem, deitam-se fora!... Voltando aos avós, conservam-se no seu canto, amparando-se mutuamente, até que um dia vão para um lar. Quem poderia cuidar deles? Sim, quem? Gatos já poucas pessoas têm e, coitados, não estão deitados em almofadas a ronronar, andam aos saltos, dum lado para o outro, com as orelhas para trás, ao ritmo dos donos. Em muitos casos há mais do um aparelho de televisão: Um na sala, outro no quarto do casal, outro no quarto dos filhos. Cada um escolhe o programa que quer ver, assim, a família fica dividida, em vez de estar junta a apreciar a companhia uns dos outros, naquela parcela de tempo que antecede a hora de deitar. Uma amiga contou-me que por vezes a filha, antes de ir para o seu quarto, pergunta-lhe se não quer ler-lhe uma história, ou rezar uma oração; pretexto para a ter junto dela. Embora cansada, quando chega à noite, compreende esse anseio e acompanha-a. Ajuda-a a vestir o pijama, aconchega-lhe a roupa, dá-lhe um beijo, senta-se à beira da cama e, cheia de boa vontade, começa a rezar um “Pai Nosso”, mas por vezes não chega a acabar a oração. As pálpebras pesam-lhe. Procura manter os olhos abertos, mas o sono acaba por vencê-la. Hoje em dia a vida está difícil para todos, mas embora alguns homens ajudem nas tarefas caseiras, as mulheres são sempre as mais sobrecarregadas: esposas, mães, donas de casa e profissionais. Um dia destes, entrei numa pastelaria para comer um bolo. Ao meu lado estava uma senhora jovem a falar ao telemóvel e sobre o balcão, à sua frente, uma chávena de café a fumegar. Não pude deixar de ouvir a conversa, por mais discreta que tivesse querido ser. Já tinha pedido o meu pastel de nata, e estava desejosa de lhes “ferrar” os dentes. Percebi que falava com um filho, recomendando-lhe que pedisse ao pai, assim que ele chegasse a casa, para ir comprar uma “pizza” porque se esquecera de deixar os bifes a descongelar:- Olha, querido, acrescentou, diz-lhe também que tenho uma reunião e não sei a que horas vou chegar. “Jinhos” até logo! – Tomou o café num trago, acendeu um cigarro e desapareceu veloz. Pensei nos jantares de outrora, das famílias da classe média, na sopa de feijão encarnado, nos pastéis de bacalhau com arroz de tomate, nos “Joaquinzinhos fritos...” “Agora os tempos são outros!” Adeus tigelas de marmelada e pratos de arroz doce, feitos pelos avós. Para a frente os congelados, os enlatados, os frangos assados, as benditas “pizzas!” As sopas, o puré de batata, os pudins instantâneos. Tudo instantâneo!!! Para a maior parte das pessoas, vinte e quatro horas é pouco para o que têm que fazer e descontando algumas, para dormir e engolir qualquer coisa, as vinte e quatro horas ainda ficam reduzidas. O tempo vai passando. As crianças vão crescendo.. Quando chegam aí aos seus dez anos, onze anos, ou antes, os pais acham que já são suficientemente “responsáveis” para lhes entregar as chaves de casa e voltarem da escola sozinhos. Ensinam-lhes a regressar pelo caminho que acham mais conveniente, recomendam-lhes que tenham cuidado com os carros e que nunca aceitem, seja o que for, convites de desconhecidos. Se tocarem à campainha, não abram a porta sem terem a certeza de quem é. Os pequenos ao princípio ficam orgulhosos da confiança que os pais depositaram neles. Mais tarde porém, não se sentem assim tão bem. Seguem os conselhos que lhes deram, mas quando entram em casa, “que silêncio!” Primeiro desembaraçam-se das mochilas, que pesam como chumbo, depois despem os blusões, atiram-nos para qualquer lado e vão direitos ao frigorífico. Abrem a porta: leite, queijo, iogurtes... optam pelos iogurtes... a lei do menor esforço. Há dias um dos meus alunos confessou-me:- É muito “chato” estar sozinho. À hora a que chego a casa, a televisão não dá nada de jeito; jogo um bocado no computador, depois vou buscar a mochila para fazer os trabalhos. Às vezes nem sei por que disciplina hei-de começar. Pela matemática? Hum! Detesto! Do inglês também não gosto nem um bocadinho... “Porra!” não há nada que se aproveite, talvez a história...Vou à dispensa buscar guloseimas. Que sorte, quando encontro um chocolate! Fico mais bem disposto! – Oxalá no decorrer dos anos, um chocolate, possa preencher-lhe os “vazios”, e nunca se sinta tentado a recorrer “àquilo” que ninguém quer para os seus filhos, para os seus netos, nem para os filhos dos outros, nem para os netos dos outros, para ninguém!... Agora como sou mulher, também sou “fada” e como sou fada, também tenho uma “varinha de condão”. Quero entrar à hora do intervalo, numa escola secundária, sem ser vista, observar os diversos grupinhos de jovens para ver o que estão a fazer e ouvir o que estão a dizer. Escolhi uma perto da minha casa e num instante pus-me lá. Entrei. Passei por duas raparigas, uma loira franzina de cabelos compridos, outra mais forte, morena, cabelos castanhos encaracolados. Parei a ouvi-las. A segunda perguntou à primeira: - Então, ainda és virgem? – A loirinha “corou até às orelhas, porque era virgem,” “e, como já tinha quinze anos, considerava uma vergonha”! “Parecia que ninguém a tinha querido!...” Resolveu mentir e respondeu-lhe: - Que ideia! Onde isso já vai! E tu? – A outra, com muita naturalidade e desenvoltura, retorquiu: - Eu? Com dezassete anos? Até já tenho um filho de três meses. A loirinha imaginou que ela era casada e advertiu: - “Casaste cedo!” – Ao que a morena repostou: - Que disparate, como se fosse preciso casar para ter filhos! Calhou! Era um namorado recente e eu nem gostava muito dele... Os meus pais é que estão a criar o bebé e eu continuo a estudar. Quero ser arquitecta e nunca perco uma oportunidade de ir com os meus amigos a uma discoteca ou a uma festa...Por mim “deslizei” e aproximei-me de três mocinhas que com as cabeças muito unidas espreitavam um catálogo de modas que uma delas folheava lentamente. Apanhei-as a apreciar duas páginas dedicadas a “lingerie”. As palavras “sexy” e sensual saíam de todas as bocas. Uma preferia o biquini preto e dizia: - Ai que “sexy”, todo em renda! Se tivesse dinheiro comprava-o já! – Outra gostava mais da cor de salmão, em cetim, que achava extremamente sensual, a terceira estava encantada com uma camisa de noite, rosa pálido e lembrava: - Devíamos guardar o dinheiro dos lanches para um dia comprarmos uma peça destas, e acrescentou: com algum que tirássemos da semanada, talvez lá chegássemos e ao jantar comíamos como umas “frieiras”, e os nossos pais ficavam muito contentes, por andarmos com tanto apetite. Desataram a rir às “bandeiras despregadas!” Afastei-me e num recanto do espaço destinado ao recreio, estavam vários casalinhos a beijarem-se; alguns rapazes iam fumando charros... Vim-me embora; estava-me porém reservado como “prémio de consolação” a surpresa agradável de ouvir os comentários de uma rapariga e dois rapazes que iam ter testes no dia seguinte. Um dizia: - Vou fazer uma “directa”; começo e estudar hoje à noite, até de manhã, e só paro uma hora antes de vir para a escola. A rapariga não estava de acordo com o método do colega e afirmava: - Claro que vou fazer um serão mas sem exageros...Assim, dessa maneira, pode ser contraproducente. O terceiro concordou com ela. Lá ficaram os três a fazer projectos para o futuro. Todos aspiravam a uma carreira brilhante. Já tinha andado alguns passos e ainda os ouvia falar em cursos diversos, bolsas de estudo, doutoramentos no estrangeiro. Enfim, há uma parte da mocidade que não se deixa envolver pelas vicissitudes desta época... Apressei-me a sair da escola, não fosse passar o “encantamento”, e, como na Cinderela, não perder própriamente o sapato, mas verem uma senhora a deambular por entre os jovens, armada em “cusca”... Respirei fundo! Sentia-me um pouco abatida. Ralhei comigo mesma: - Então, o que é isto? Mas que conservadora! Que retrógrada. Afinal o que acabei de ouvir e de ver entre aqueles jovens não tem nada de mais! Os casalinhos a beijarem-se, é naturalíssimo. Então é melhor que eu não chegue a ligar a televisão...Que disparate, tem que se acompanhar a evolução, o progresso! Peguei no telemóvel. Como estava perto da casa da minha amiga Cacilda, resolvi ligar-lhe, porque se não tivesse saído, seria uma boa oportunidade para lhe fazer uma visita. Atendeu-me ao segundo toque: - Olha Cacilda, sou eu. Ah! Reconheceste logo a minha voz! Sabes, continuei, estou aqui, muito perto da tua casa e lembrei-me de ir aí um bocadinho. Calha-te bem? Óptimo! Quê? Tens montes de novidades para me dar? Quatro divórcios entre casais nossos conhecidos? Outros que se vão juntar? E casamentos? Nenhuns?! Uma das que se vai divorciar do marido é a “Fátinha?” Mas ela casou ainda nem há um ano! Como, ele é “gay?” Olha, Cacilda, põe uma chaleira de água ao lume, se fazes favor, porque me está a apetecer imenso um cházinho de tília. Tens tília em casa? Está bem, senão comprava pelo caminho; sim, duas saquetas, sempre fica mais forte... Até já! – Desliguei o telemóvel. Lá fui andando, olhando para algumas montras só por olhar e lastimando: - Coitada da “Fátinha!” Um casamento tão lindo! Tudo parecia ser perfeito! E quem serão os outros casais que também vão divorciar-se? A Cacilda é assim, está sempre em cima dos acontecimentos!... E até me pareceu bem disposta. Enfim temos que aceitar estas surpresas desagradáveis com serenidade, tendo sempre em mente a frase tão proferida hoje em dia: “Agora os tempos são outros!...” Susana Cardoso


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