Saturino Gomes estuda os 33 artigos da nova Concordata e compara o texto de 2004 com o de 1940
A NOVA CONCORDATA
1.Aspectos gerais
É de louvar a boa vontade das duas partes em chegarem a acordo sobre a revisão da C1940 que foi benéfica para a pacificação das relações Igreja-Estado em Portugal.
Segundo a opinião de alguns especialistas, de que destaco o Prof.Carlos Corral Salvador (proferiu uma conferência na UCP em Janeiro 2004), a C1940 é um texto bastante bom, que salvaguarda os interesses das duas partes.
Vários factores e circunstâncias conduziram a que se tornasse inevitável a revisão desta Concordata, de que destaco: transformações a nível social, cultural, político, económico que marcaram muito a sociedade portuguesa; a celebração do Concílio Ecuménico Vaticano II; as alterações políticas, decorrentes da Revolução de 25 de Abril de 1974, nomeadamente a transição para um regime democrático; a adesão à União Europeia, da qual Portugal é membro de pleno direito; a promulgação da nova Lei da Liberdade Religiosa (LLR), em 26 Abril 2001, que veio pôr em realce o princípio constitucional de igualdade de direitos entre todas as confissões religiosas e da liberdade religiosa para todos os cidadãos.
O conteúdo de certos articulados da C1940 precisavam de actualização. Algumas normas perderam a sua actualidade, uma ou outra norma foi pouco praticada, outras foram extrapoladas na sua interpretação e aplicação. Áreas como as do ensino (a todos os níveis), ensino da religião nas escolas, património, direito fiscal, missionação, instituições sociais, etc., necessitavam de uma conveniente adequação.
O novo texto respeita as relações Igreja-Estado, pautando-se pelo equilíbrio. Consta de 33 artigos, ao passo que a de 1940 continha 31 artigos, havendo ainda o Acordo Missionário (21 artigos), também de 7 Maio 1940.
O Papa, ao receber o Primeiro Ministro português, após a assinatura da Concordata, referiu “os sentimentos de consideração recíproca que animam as relações entre a Santa Sé e Portugal”.
“Exprimo o meu profundo apreço pela atenção que o Governo e a Assembleia da República portuguesa demonstram em relação à missão da Igreja, culminada na hodierna assinatura”. Segundo o Santo Padre, este novo acordo bem favorecer “o bem comum da Nação”.
O Centro de Estudos de Direito Canónico da Universidade Católica Portuguesa tem em mente organizar debates e uma edição anotada, como já o fez em relação à Concordata de 1940 (C1940).
I.Apreciação em particular
1. O Artigo 1º, na sequência dos tratados internacionais, do espírito do Concílio Vaticano II, e da doutrina social da Igreja declara o mútuo entendimento e respeito reinante entre a Igreja e o Estado português no sentido de promover a pessoa humana e os valores da justiça e da paz.
Reza o artigo: «A República Portuguesa e a Santa Sé declaram o empenho do Estado e da Igreja Católica na cooperação para a promoção da dignidade da pessoa humana, da justiça e da paz».
Esta cooperação, como prevê o artigo 4º, pode levar as suas partes a agirem em areópagos internacionais de que façam parte, promoverem acções conjuntas, com relevância no espaço dos países de língua portuguesa; refere-se à colaboração em acções conjuntas, bilaterais ou multilaterais. A instituição de uma comissão paritária, prevista no artº 19, tem por finalidade desenvolver o princípio da cooperação. É inovadora esta proposta, o que abre imensas perspectivas de colaboração.
O Estado português reconhece a personalidade jurídica da Igreja Católica e as relações são asseguradas mediante um Núncio Apostólico junto da República Portuguesa e um Embaixador junto da Santa Sé. Era o sistema vigente com a Concordata de 1940.
2. O Artigo 2º respeita e confere plena liberdade à Igreja no exercício do seu múnus, sem qualquer restrição no culto, no magistério e ministério, na jurisdição eclesiástica. A Santa Sé pode comunicar livremente com os Bispos, o clero e os fiéis, tal como estes o podem com a Santa Sé. Essa liberdade religiosa é reconhecida à Igreja e às suas instituições que actuem nos campos da consciência, culto, reunião, associação, expressão pública, ensino e acção caritativa. Este artigo corresponde quase todo ao artigo 2º da Concordata 1940 (mencionaremos C1940),incluindo-se um 4º parágrafo relativo às diversas instituições da Igreja, que gozam de um explícito reconhecimento, como sucede na Lei da Liberdade Religiosa com as outras confissões. Fica, pois, assegurada e protegida a liberdade da Igreja, evitando tentações de intromissão por parte do Estado como são exemplo disso algumas situações dos séculos XIX e XX.
A protecção dos lugares de culto e dos eclesiásticos no exercício do seu ministério, bem como o evitar do uso ilegítimo de práticas ou meios católicos, é assegurado pelo artigo 7º.
3. Artigo 3º - Os Domingos, como dia importante para os cristãos, é respeitado e, deste modo, os fiéis podem cumprir as suas obrigações religiosas, sem impedimento por parte das autoridades (ver artigo 19º, C1940, em que o Estado providenciará para que os funcionários públicos cumpram os seus deveres religiosos). Outros dias festivos, feriados, serão considerados em Acordos separados. Para já, o artigo 30º integra as festas actuais como feriados, deixando aberta a possibilidade da sua alteração.
4. Pela primeira vez, a Concordata reconhece a personalidade jurídica da Conferência Episcopal Portuguesa, respeitando a sua identidade estatutária. O mesmo sucede em relação a outros países, por exemplo a Itália. Ela poderá celebrar acordos, protocolos com o Governo, no âmbito das suas competências. Segundo o Código de Direito Canónico, “a Conferência episcopal, instituição permanente, é o agrupamento dos Bispos de uma nação ou determinado território, que exercem em conjunto certas funções pastorais a favor dos fiéis do seu território, a fim de promoverem o maior bem que a Igreja oferece aos homens, sobretudo por formas e métodos de apostolado convenientemente ajustados às circunstâncias do tempo e do lugar, nos termos do direito” (cân.447). A Carta Apostólica “Apostolos Suos” (21 Maio 1998) define o estatuto teológico e jurídico das Conferências, instituições de direito eclesiástico. Não são um órgão supranacional e que condicionem a acção dos Bispos nas suas Dioceses.
O nº 20 do documento pontifício define bem as competências: «Na Conferência Episcopal, os Bispos exercem conjuntamente o ministério episcopal em benefício dos fiéis do território da Conferência; mas, para que tal exercício seja legítimo e obrigatório para cada um dos Bispos, é necessária a intervenção da autoridade suprema da Igreja, que, através da lei universal ou de mandatos especiais, confia determinadas questões à deliberação da Conferência Episcopal. Os Bispos, tanto singularmente como reunidos em Conferência, não podem autonomamente limitar o seu poder sagrado em favor da Conferência Episcopal, e menos ainda duma parte dela, quer esta seja o Conselho Permanente, uma comissão, ou o próprio Presidente. Esta verdade está patente na norma canónica relativa ao exercício do poder legislativo dos Bispos reunidos em Conferência Episcopal:A Conferência Episcopal apenas pode fazer decretos gerais nos casos em que o prescrever o direito universal ou quando o estabelecer um mandato peculiar da Sé Apostólica por motu proprio ou a pedido da própria Conferência. Caso contrário, mantém-se íntegra a competência de cada Bispo diocesano, e nem a Conferência nem o seu Presidente podem agir em nome de todos os Bispos, a não ser que todos e cada um hajam dado o consentimento».
5. O Artigo 9º trata das dioceses, paróquias, jurisdições eclesiásticas, nomeação e remoção dos Bispos.
A Igreja goza da devida liberdade para se organizar, consoante o direito canónico, respeitando o Estado a sua organização institucional: Dioceses, paróquias, outras jurisdições eclesiásticas. Essa liberdade acarreta também a possibilidade de criação, modificação e extinção.
O Estado reconhece a personalidade jurídica das mesmas, desde que o órgão competente do Estado seja notificado nos termos legais. O mesmo sucedia com a Concordata de 1940.
6. A nomeação e a remoção dos Bispos residenciais e com direito a sucessão, antes sujeita a uma consulta ao governo (artigo 10º C 1940), é de exclusiva competência da Santa Sé que informará o governo a propósito. O novo texto menciona unicamente os bispos em geral, sem entrar em especificações.
É a solução melhor, tendo em conta o espírito do Vaticano II e a total separação entre a Igreja e o Estado, pois cada um é autónomo na sua esfera. O Governo não tinha o direito de veto, mas tão só a faculdade de manifestar “objecções de carácter político geral” acerca da nomeação de um Arcebispo ou Bispo residencial ou de um coadjutor com direito a sucessão. Mesmo em caso de objecção, não impedia que a Santa Sé procedesse à nomeação.
7. Artigo 10º. A Igreja goza da devida liberdade em constituir, modificar e extinguir pessoas jurídicas canónicas, a que o Estado reconhece personalidade jurídica civil. Reconhece a personalidade jurídica da Igreja Católica, Conferência episcopal, dioceses, paróquias, outras jurisdições, institutos de vida consagrada e sociedades de vida apostólica canonicamente erectos, outras pessoas jurídicas canónicas: instituições culturais, sociais, de assistência e solidariedade...
No fundo, trata-se do aperfeiçoamento dos artigos 3º e 4º da C 1940. Esse reconhecimento obedece a alguns requisitos: participação pela autoridade eclesiástica competente à autoridade civil das pessoas jurídicas canónicas, inscrição em registo próprio do Estado. A personalidade jurídica civil dessas instituições é reconhecida pelo Estado (em geral, o Governo civil), mediante documento apresentado pela autoridade eclesiástica. Nesse documento deve resultar a sua erecção, fins, identificação, órgãos representativos e respectivas competências.
Esta modalidade vale para as pessoas jurídicas que se vierem a constituir ou forem comunicadas após a entrada em vigor da nova Concordata. Para as definidas nos artigos 1, 8 e 9, não é preciso, atendendo à sua vigência pela anterior Concordata.
8. Artº 11. Essas pessoas jurídicas canónicas regem-se pelo direito canónico e têm a mesma capacidade civil que o direito português atribui às pessoas de idêntica natureza.
9. Artº 12. As pessoas jurídicas canónicas reconhecidas pelo Estado que, para além de fins religiosos, prossigam fins de assistência e solidariedade, gozam dos direitos e benefícios atribuídos às pessoas colectivas privadas com fins da mesma natureza. Coloca em pé de igualdade estas instituições, reconhecendo-lhes o mérito e acção em favor da comunidade.
10. Os artigos 13º, 14º, 15º e 16º - dedicados ao casamento – seguem quase textualmente os artigos 22º, 23º, 24º e 25º da C 1940 e o texto do Protocolo Adicional de 1975. É eliminado o último parágrafo do artº XXII da C1940, em que se punia o pároco e o funcionário público que não cumprissem as suas obrigações quanto ao envio da cópia da acta e da transcrição da mesma, respectivamente.
O artº 15º reproduz ipsis verbis o protocolo adicional de 1975 acerca da obrigação dos cônjuges católicos assumirem a obrigação de respeitarem as propriedades essenciais do matrimónio, com destaque para a indissolubilidade. Assim, os cônjuges não devem recorrer ao divórcio civil, pois é contra a natureza do matrimónio canónico.
O artigo 16º tem paralelo com o artº XXV C1940, mas com alterações. Constou que nos trabalhos de revisão, este fosse um aspecto que tenha causado algumas dificuldades.
«As decisões relativas à nulidade e à dispensa pontifícia do casamento rato e não consumado pelas autoridades eclesiásticas competentes, verificadas pelo órgão eclesiástico de controlo superior, produzem efeitos civis, a requerimento de qualquer das partes, após revisão e confirmação, nos termos do direito português, pelo competente tribunal do Estado» (artº 16,1).
No nº 2 deste artigo, que é totalmente novo, concede-se uma atenção especial ao tribunal competente civil que verifica as decisões, quanto à sua autenticidade, competência do tribunal eclesiástico, actuação dos princípios do contraditório e da igualdade, não ofensa dos princípios da ordem pública internacional do Estado português.
Aqui poderão surgir eventuais problemas na aplicação destes princípios, pois poderão acontecer divergências na ordem jurídica portuguesa. O chamado direito comunitário (União Europeia) poderá condicionar, sobretudo em certas situações, a aplicação das decisões canónicas. Veremos!...
11. O artº 17º tem paralelo no artº XVIII da C1940 (artº 18º): a assistência religiosa às Forças Armadas e a jurisdição do Ordinário Castrense. O Estado português continua a garantir essa assistência religiosa às Forças Armadas, baseando-se na liberdade religiosa. “A República Portuguesa garante o livre exercício da liberdade religiosa através da assistência católica aos membros das forças armadas e de segurança que a solicitarem, e bem assim através da prática dos respectivos actos de culto” (artº 17, 1). Essa liberdade religiosa na assistência religiosa está explícita na Lei da Liberdade Religiosa (mencionaremos LLR), artº 13,1, em relação a outras religiões e confissões. De referir que menciona-se também as “forças armadas e de segurança”, que inclui as polícias. É uma prática que já se segue, pois até o Ordinário Castrense se intitula de “Bispo das Forças Armadas e de Segurança”.
Tanto no nº 1 como no nº 2, faz-se questão em dizer que essa assistência religiosa é prestada a quem a solicitar livremente, sem qualquer imposição. O Estado modera esta assistência, oferece-a a quem desejar pois compreende a sua importância, recusa-se a impô-la. O teor é diferente do artº XVIII da C1940.
O nº 3 contempla as formas de exercício e de organização da assistência religiosa, sem entrar em pormenores, mas remetendo a sua organização e regulamentação através de acordos entre as partes interessadas. Estas são o Estado e a Igreja (Santa Sé, Conferência Episcopal Portuguesa).
A questão da graduação dos capelães militares e do seu estatuto será definido em legislação posterior.
Por outro lado, o nº 4 do artigo 17º ressalva a possibilidade dos eclesiásticos poderem cumprir as suas obrigações militares sob a forma de assistência religiosa às forças armadas e de segurança, sem prejuízo do direito de objecção de consciência. Na C1940, o artº 14º previa essa possibilidade, não referindo a objecção de consciência. Mas a 2ª parte ressalvava a cura de almas, evitando prejuízo para as mesmas: «Todavia o Governo providenciará para mesmo em caso de guerra o dito serviço militar se realize com o menor prejuízo possível para a cura de almas das populações na Metrópole e no Ultramar Português».
12. O artº 18º, na sequência da C1940 (paralelo 17º) garante o exercício da liberdade religiosa a diversos grupos de fiéis impedidos de exercer, em condições normais, o direito de liberdade religiosa e desde que o solicitem.
São as pessoas internadas em estabelecimentos de saúde, de assistência, de educação ou similar; ou detenção em estabelecimento prisional ou similar.
A LLR prevê a assistência religiosa para todas as confissões religiosas.
13. O artigo 19º, em cinco pontos, concerne o ensino da religião e moral católicas nos estabelecimentos de ensino público não superior, sem qualquer forma de discriminação e respeitando a liberdade religiosa (C1940, artigo 21º).
Este artigo tem conta a legislação destes últimos anos sobre o ensino da EMRC nas escolas.
No âmbito da liberdade religiosa, a República portuguesa e do dever de cooperar com os pais na educação dos filhos, garante as condições necessárias para que o ensino da religião e moral católicas seja ministrado nos estabelecimentos de ensino público não superior. Na C1940 afirmava-se de forma incisiva: «O ensino ministrado pelo Estado nas escolas públicas será orientado pelos princípios da doutrina e moral cristãs tradicionais do País».
Este novo artigo tem conta a legislação destes últimos anos sobre o ensino da EMRC nas escolas.
Segundo o Professor António de Sousa Franco, um dos membros da delegação da Santa Sé que negociou a Concordata, e em declarações à comunicação social, «na realidade, aquilo que o texto prevê é o respeito pela liberdade religiosa e, em colaboração com os pais na educação dos filhos, o ensino da religião moral e católica nos estabelecimentos de ensino público não superior, sem discriminação relativamente a qualquer outra matéria».
Os interessados em frequentar a disciplina deverão inscrever-se desde que tenham capacidade legal, faltando esse requisito serão os pais ou seu representante legal a fazê-lo.
Será a autoridade eclesiástica competente a verificar a idoneidade dos docentes (também contemplada na C1940), a teor do direito português e do direito canónico. Em princípio, será o Bispo diocesano (com o apoio dos seus colaboradores) a aprovar os candidatos, pressupondo a sua preparação e identificação com a doutrina da Igreja Católica.
Essa mesma autoridade deverá manifestar o seu parecer quanto à nomeação ou contratação, transferência e exclusão desses mesmos docentes. Não faz sentido que pessoas à margem da Igreja, com comportamentos hostis à Igreja, em situação de ruptura com a mesma, estejam a leccionar uma matéria que tem a ver com a doutrina e moral. Nem sempre será agradável para a autoridade tomar decisões nesse sentido, mas a dignificação do estatuto assim o exige.
Como corolário de quanto dito, é da competência exclusiva da autoridade eclesiástica definir o conteúdo do ensino da religião e moral católicas, em conformidade com as orientações gerais do sistema de ensino português.
14. Artº 20º. O direito da Igreja Católica à fundação de seminários e estabelecimentos de formação e cultura eclesiástica está consagrado neste artigo. Na C1940 havia um único artigo para os seminários e para as escolas da Igreja. Agora, é desdobrado em dois (20º e 21º).
Como na C anterior, a Igreja tem liberdade para dirigir os seus seminários, sem fiscalização do Estado.
Acrescenta-se um novo conteúdo: o reconhecimento dos estudos, graus e títulos obtidos nesses estabelecimentos «é regulado pelo direito português, sem qualquer forma de discriminação relativamente a estudos de idêntica natureza» (artº 20,3).
15. Artº 21º - No âmbito da liberdade de ensino, garante-se à Igreja Católica e às pessoas jurídicas canónicas (Conferência Episcopal Portuguesa, dioceses, paróquias, jurisdições eclesiásticas, Institutos de Vida Consagrada, Sociedades de Vida Apostólica, outras pessoas jurídicas canónicas) o direito de estabelecerem e orientarem escolas em todos os níveis de ensino e formação, sem qualquer forma de discriminação, sempre de acordo com o direito português.
Na C1940, situação paralela encontra-se no artº 20º. Este artigo foi aperfeiçoado (como outros) e dele foram eliminadas algumas ideias que estavam veiculadas com a cultura então dominante: «As autoridades eclesiásticas competentes cuidarão que no ensino das disciplinas especiais, como no da História, se tenha em conta o legítimo sentimento patriótico português».
A liberdade de ensino é um direito garantido pela Constituição portuguesa. A Igreja, como aliás outras instituições, sempre teve o direito de criar escolas próprias e de veicular a sua doutrina. Quanto aos programas escolares, os estabelecimentos têm seguido o estipulado oficialmente.
Uma questão prática é a da igualdade de oportunidades entre a escola oficial e a privada, em que os pais têm de pagar bastante mais por terem de colocar os seus filhos nas escolas privadas.
O nº 2 estabelece o reconhecimento para os graus, títulos e diplomas obtidos por essas escolas, tendo em consideração aquilo que o direito português determina para escolas semelhantes na natureza e na qualidade.
Penso que neste campo tem havido uma evolução no sentido de aceitar e reconhecer os diplomas das escolas privadas.
O nº 3 versa sobre a especificidade da Universidade Católica Portuguesa: «A Universidade Católica Portuguesa, erecta pela Santa Sé em 13 de Outubro de 1967 e reconhecida pelo Estado português em 15 de Julho de 1971, desenvolve a sua actividade de acordo com o direito português, nos termos dos números anteriores, com respeito pela sua especificidade institucional».
Atendendo à importância e prestígio deste estabelecimento de ensino superior - o único da Igreja em Portugal – e à necessidade de salvaguardar a sua especificidade, é-lhe conferida uma protecção legal concordatária. A Universidade desenvolve a sua acção no âmbito da liberdade de ensino, da legalidade portuguesa, mas com um cunho particular, isto é, o da sua especificidade eclesial. O diploma governamental que regula o seu estatuto é o Decreto-Lei 128/90, de 17 de Abril.
Os seus Estatutos, aprovados pela Santa Sé em 1993, fazem menção do reconhecimento obtido pelo Estado português pelo Decreto-Lei nº 307/71, de 15 de Julho, revisto pelo Decreto-Lei nº 128/90, de 17 de Abril.
Até ao momento, os cursos da Universidade não são submetidos ao Governo para aprovação, mas os graus são reconhecidos.
O apoio financeiro do Governo tem diminuído nestes últimos anos, causando graves problemas à gestão da Universidade. A tentativa por parte de algumas forças políticas de circunscrever a UCP à esfera das universidades privadas, não teve êxito.
A crítica de que a UCP goza de privilégios é destituída de fundamento e é lançada para denegrir a sua missão na sociedade portuguesa, onde encontra grande aceitação.
16. Artº 22º. É dedicado ao património e compõe-se de três números. Tem paralelo com a C1940 no artº VI. O nº 2 reproduz textualmente o §4 da C1940. O nº1 é semelhante ao §3 da C1940. Acrescenta-se, quanto à cedência de objectos o seguinte: «Em outros casos e por motivos justificados, os responsáveis do Estado e da Igreja podem acordar em ceder temporariamente objectos religiosos para serem usados no respectivo local de origem ou em outro local apropriado» (nº 3).
17. Artº 23º. Este artigo é totalmente novo e contém 4 números. Reflecte de certo modo o caminho percorrido pela Igreja e o Estado em áreas comuns da cultura.
O Estado e a Igreja Católica empenham-se na salvaguarda, valorização e fruição dos bens, de propriedade da Igreja Católica ou de pessoas jurídicas canónicas reconhecidas, e que fazem parte do património cultural português. É uma concepção dinâmica do património e dos seus tesouros que devem estar ao serviço da cultura portuguesa.
O princípio de cooperação – bem explícito no artº 1º - tem a sua aplicação na protecção que o Estado português concede (e se obriga) aos bens eclesiásticos, a nível de direito e de outros mecanismos.
Para um melhor acompanhamento e salvaguarda dos bens, as duas partes acordam em criar uma Comissão bilateral «para o desenvolvimento da cooperação quanto a bens da Igreja que integrem o património cultural português».
Esta Comissão terá uma missão importante no sentido de promover e valorizar os bens da Igreja, comprometendo-se assim o Estado em proceder às acções necessárias para a identificação, conservação, segurança, restauro e funcionamento desses bens, em igualdade de oportunidades com os bens do Estado.
Prevê-se a eventualidade de celebração de acordos entre as duas partes, nos termos do artº 28º. No início da década de 80 chegou-se a celebrar algum acordo nessa matéria.
18. O artº 24 tem paralelo no artº 7º da C1940, excepto o último ponto que é novo, embora todo a sua redacção seja mais aperfeiçoada.
No fundo, os templos, edifícios, dependências ou objectos ao culto católico não podem ser demolidos, ocupados, transportados, ou sujeitos a obras ou destinados a outros fins, a não ser mediante acordo prévio com a autoridade eclesiástica competente, e desde que haja uma «urgente necessidade pública». Respeita-se a autonomia da Igreja nos seus bens e, em particular, o respeito pelos seus lugares de culto. Mas tudo isso deve ser realizado com critérios de objectivos de necessidade pública.
Nos casos de requisição ou expropriação, a autoridade eclesiástica competente será consultada, mesmo sobre o quantitativo da indemnização. Por decisão da autoridade eclesiástica competente, os bens serão dessacralizados, quer dizer, privados do seu carácter sagrado.
Outro número, também ele relevante, é o direito de audiência prévia à autoridade eclesiástica, quando se fizerem obras ou quando se iniciar a inventariação ou classificação dos bens culturais.
19. O artº 25 é novo e consagra alguma prática existente neste domínio. É o empenho do Estado na afectação de espaços a fins religiosos. Deve haver uma mútua colaboração entre o Estado e a Igreja no planeamento territorial, prevendo a afectação de espaços para fins religiosos.
20. Artº 26 – isenções fiscais. A Igreja Católica e as suas instituições, desde que dedicadas a fins religiosos, são isentas de impostos sobre os contributos dos fiéis para o culto; ofertas para a concretização de fins religiosos; distribuição gratuita de publicações com avisos ou instruções religiosas e sua afixação nos lugares destinados ao culto.
Serão também isentos de impostos os lugares de culto ou edifícios que se destinem a fins religiosos; seminários e instituições de formação eclesiástica; outros bens imóveis de carácter religioso.
As pessoas jurídicas canónicas, detentoras de actividades diversas das religiosas, como as de solidariedade social, educação e cultura, além dos comerciais e lucrativos, ficam sujeitas ao IRC. Poderá ser o caso de casas de hóspedes, pensões, estabelecimentos comerciais.
Os eclesiásticos estarão sujeitos ao pagamento de impostos, o que não acontecia até agora. No artº 8º da C1940 estipulava-se: «...de igual isenção gozam os eclesiásticos pelo exercício do seu munus espiritual».
21. O artº 27 prevê que a Igreja, através da Conferência Episcopal Portuguesa, possa aderir ao sistema de receitas fiscais previsto no direito português, o que implica um acordo entre os órgãos da República e as autoridades eclesiásticas competentes.
O artº 32º da Lei da Liberdade Religiosa diz o seguinte: «Uma quota equivalente a 0,5 % do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, liquidado com base nas declarações anuais, pode ser destinada pelo contribuinte, para fins religiosos ou de beneficência, a uma igreja ou comunidade religiosa radicada no País, que indicará na declaração de rendimentos, desde que essa igreja ou comunidade religiosa tenha requerido o benefício fiscal».
Pensava-se que a Igreja Católica pudesse também seguir o mesmo caminho, o que já estava a causar alguma perplexidade junto de alguns sectores. Optou-se por esta via que é mais moderada e menos arriscada. Em Itália, na sequência dos Acordos com a Santa Sé, os fiéis podem destinar parte dos seus rendimentos à Igreja, cujas receitas são geridas por um Instituto eclesial nacional.
22. O artº 28 que o conteúdo da nova Concordata possa ser desenvolvido por futuros acordos entre as autoridades competentes da Igreja e do Estado. É quanto sucede com as Concordatas/Acordos de outros países, sobretudo a nível de sectores como a educação, a saúde, o património, etc.
23. Uma novidade é a instituição entre as duas partes (Estado e Santa Sé) de uma comissão paritária, que desenvolverá a sua actividade à luz do princípio da cooperação.
As suas atribuições estão previstas em duas alíneas: procurar, em caso de dúvidas na interpretação do texto da Concordata, uma solução de comum acordo; sugerir outras medidas para a sua execução.
É necessária esta Comissão, pois prevê-se o natural aparecimento de dúvidas quanto a alguns aspectos da aplicação do novo texto. É um princípio de sã cooperação e que funciona a nível das relações bilaterais entre os Estados.
24. Artº 30. O Estado português reconhece algumas festividades católicas como feriados: 1 de Janeiro, Corpo de Deus, Assunção, Todos os Santos, Imaculada Conceição, Natal.
Logo no artº 3, o Estado declara que reconhece como dias festivos os Domingos e prevê a celebração de um Acordo peculiar para este efeito.
25. Artº 31. O Acordo Missionário deixa de existir. Mas ficam ressalvadas as situações jurídicas existentes e constituídas ao abrigo da Concordata de 7 Maio 1940 e do Acordo Missionário.
26. Artº 32. Como aconteceu com a C 1940, também com a nova Concordata será necessária a elaboração, revisão e publicação de legislação complementar que seja necessária. Cada uma das partes publicará a sua legislação, o que não impede as consultas recíprocas.
Será morosa e com certeza delicada a publicação de legislação complementar, sobretudo em algumas áreas, atendendo às implicações com o direito canónico, o direito português e a existência da LLR. Esta última não tem repercussões na Igreja Católica mas não poderá ser ignorada, até poderá servir de inspiração para alguns aspectos.
27. Artº 33. A Concordata só entrará em vigor após a troca de instrumentos de ratificação, substituindo então a C1940. Tal procedimento poderá levar alguns meses ainda. Depende da submissão à Assembleia da República e dos passos consequentes.
CONCLUSÃO
Podemos concluir que esta é uma boa Concordata, adaptada à realidade actual da vida da Igreja e de Portugal, membro que é da União Europeia.
A cooperação entre a Igreja e o Estado – princípio que ressalta aos nossos olhos – vem reforçar ainda mais as relações entre as duas instituições, se bem que já existisse esse espírito e a prática.
A cooperação concretiza-se em diversos domínios, os explícitos e outros que poderão surgir, atendendo à realidade e às necessidades.
É fundamental o diálogo entre a Igreja e o Estado, para salvaguarda das suas autonomias e do bem dos cidadãos.
M.Saturino Gomes
Director do Centro de Estudos de Direito Canónico
Universidade Católica Portuguesa