Dossier

Aspectos éticos da ajuda médica à procriação

Daniel Serrão
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Daniel Serrão

1 – A procriação é um objectivo biológico das espécies animais dimórficas que é conseguido por uma união do corpo masculino com o feminino que permita o encontro dos gâmetas masculinos (espermatozóides) com os femininos (ovócitos). A procriação humana obedece, igualmente, a este esquema e ordena-se, como a das outras espécies, para a sobrevivência da espécie humana. Tem, portanto, uma grande dignidade biológica. 2 – Com o progresso civilizacional dos grupos humanos e o desenvolvimento da cultura exterior simbólica, a procriação acompanhou esta evolução e é, hoje, geralmente assumida como um procedimento não apenas biológico mas também cultural, partilhando de todos os valores que informam e formam o conceito de dignidade humana. O homem e a mulher assumem-se como procriadores num quadro referencial ético de valores individuais e de valores sócio-culturais. 3 – A procriação, na perspectiva ética referida a valores sociais, é uma relação entre dois seres autónomos e iguais, em que não pode haver uso nem abuso de um pelo outro, e que são complementares para a geração de novos seres vivos da espécie humana. Como sujeitos éticos, ambos os agentes da procriação assumem direitos e obrigações face à dignidade dos novos entes humanos constituídos a partir da conjugação dos gâmetas. Na perspectiva da ética sócio-cultural, ambos os progenitores aceitam, como cidadãos, que instituições sociais justas, como as que representam o poder legislativo e o poder judicial, reconheçam e protejam a procriação humana em todos os seus aspectos e em toda a sua dignidade, humana e social. 4 – Desde sempre - mas hoje, ao que parece, com mais acuidade - há situações nas quais, da união dos corpos masculino e feminino não resulta a procriação prevista e desejada por um certo homem e uma certa mulher, no quadro de um vínculo pessoal unitivo e com finalidade procriadora. A impossibilidade de procriarem é sentida pelas duas pessoas como um mal-estar físico, psíquico e social, ou seja, como doença, e leva à procura de ajuda médica. A doença é do casal, formado por um certo homem e uma certa mulher que não conseguem, entre si, procriar. 5 – Durante muito tempo nada ou muito pouco conseguia a medicina oferecer aos casais incapazes de procriar. Contudo, desde há aproximadamente 25 anos, os médicos dão ajudas diversas a estes casais, segundo as causas da incapacidade procriadora. Uma dessas ajudas é a promoção da conjugação do espermatozóide com o ovócito fora do corpo da mulher, constituindo-se embriões em laboratório (ditos in vitro). Infelizmente, este processo técnico de ajuda à procriação humana está ainda longe de ser uma cópia do processo natural e nalgumas das suas fases é um procedimento empírico sem controle científico dos acontecimentos biológicos que irão observar-se. Assim, no processo natural, de uma coorte de ovoblastos que são recrutados em cada ciclo para a maturação até ovócito só um é expulso e recolhido pela trompa, para ser fecundado por um dos espermatozóides que lá chegaram. No processo artificial a estimulação hormonal força a maturação de toda a coorte, 10 a 15 ovócitos, que são retirados da superfície externa do ovário por endoscopia intra-peritoneal e colocados em meio de cultura para se manterem vivos. Juntando-lhes espermatozóides começa a indecisão técnico-cientifica. Podem ser fecundados todos, alguns ou nenhuns. Dos fecundados podem dividir-se passando de zigoto, a embrião, a mórula, a blastocisto (ao fim de 5 – 6 dias) todos, alguns ou nenhuns. Não sabemos quantos devem ser transferidos não sabemos quantos vão fixar-se na mucosa uterina, quantos vão desenvolver-se, quantos vão completar o desenvolvimento até ao nascimento com vida e com capacidade bastante para darem satisfação ao desejo procriador do casal. 6 – É destas várias falhas de controle científico-técnico da metodologia de procriação artificial que nascem as questões éticas que, aliás, desde o início, os médicos e os biólogos que a praticam têm posto à sua consciência ética pessoal, procurando compatibilizar o seu desejo de ajudarem os casais incapazes de procriarem com a dignidade que atribuem a esses entes vivos da espécie humana, constituídos em laboratório e formados por células com uma enorme força para se multiplicarem e diferenciarem executando o seu programa genómico próprio. As perguntas éticas principais são, a meu ver, as seguintes: Sendo a ajuda médica à procriação um acto médico, com finalidade terapêutica, para tentar corrigir a doença de um casal formado pelo homem A e a mulher B, é legitimo, no plano da ética médica usar gâmetas de uma terceira pessoa exterior ao casal para obter procriação? A minha resposta é não, porque o casal continua incapaz de procriar; o médico não tratou a doença, escondeu-a aos olhos alheios mas não aos do casal. Para muitos esta “ferida” ética pode ser atenuada (mas eu penso que, em muitos casos não cicatriza) pelo consentimento mútuo dos dois membros do casal à intromissão de um gâmeta, masculino ou feminino, com material genómico alheio ao de um dos membros do casal ou, no limite, até a ambos. É legítimo, em termos de ética médica, colocar no útero de outra mulher um embrião constituído com gâmetas dos dois membros do casal incapaz de procriar, ou de um deles e de um terceiro, ou de dois estranhos ao casal, para que, após o nascimento, seja tido e havido como filho do casal incapaz de procriar? A minha resposta é não, pelos motivos apontados na resposta à questão anterior, aos quais se acrescenta a instrumentalização do processo de gestação, com ofensa à dignidade humana da gestante. Há quem acrescente o risco de comércio do útero para gestação, já verificado nalguns países, e o de recusa da mãe-incubadora a cumprir o contrato de entrega do filho (contrato não válido juridicamente) colocando a criança nascida numa situação de imensa vulnerabilidade. É legítimo, em termos de ética médica, ao serem constituídos embriões humanos, para a finalidade terapêutica de ajuda à procriação de um casal incapaz de procriar, colocar alguns embriões na situação de sobras descartáveis do processo terapêutico? A minha resposta é não porque todo o embrião humano, por exigência biológica tem direito intrínseco – e não atribuído pelo médico – à vida e ao desenvolvimento. Todo o embrião constituído in vitro só pode ser usado, com legitimidade ética, para a finalidade que justificou a sua constituição fora do campo da mulher que é a de ser colocado no útero da mulher de quem é filho. Os embriões sobrantes ou excedentários são produto espúrio de uma técnica ainda imperfeita, que muitas equipas na Alemanha, Áustria, Portugal, Canadá e Estados Unidos já substituíram por técnicas, em que não há embriões sobrantes, sem que haja menos sucesso terapêutico de um processo que já é, infelizmente, de baixa eficácia (apenas cerca de 20% dos casais que iniciam um processo de procriação por fertilização com os seus gâmetas próprios consegue ter um filho nascido e viável). Os embriões humanos não podem ser sobras. Mas se há embriões sobrantes, porque não lhe foi dada, nem pelos médicos que os constituíram para tratamento da incapacidade de procriação de um casal, nem pelos seus pais, nem por outro casal, a possibilidade de exercerem o seu direito biológico à vida e ao desenvolvimento, é eticamente aceitável os médicos destruírem-nos, com ou sem os usarem para investigação científica? A minha resposta é não. Em primeiro lugar porque nenhum embrião pode ser, legitimamente, colocado na situação de não lhe ser reconhecido o direito à vida e ao desenvolvimento. Em segundo lugar porque os embriões humanos não podem ser desviados pelos médicos para outros usos que não sejam o de tratar a incapacidade de procriar de um casal. Muitos pensam que alguns destes embriões humanos desprezados poderão ser usados, como coisas, se desse sacrifício resultar um melhor conhecimento das condições de sobrevivência e conforto biológico de futuros embriões constituídos para tratar a incapacidade de procriar de um casal e para um melhor sucesso na ajuda médica aos casais nesta situação de doença e tendem a admitir, a título excepcional, este mau uso de embriões sobrantes. Esta autorização seria dada caso a caso, por uma instituição competente, independente e com uma responsabilidade transparente para a opinião pública. Sempre com duas limitações: só para os embriões sobrantes existentes e durante um período de tempo limitado, não sendo autorizada a constituição de mais embriões sobrantes; e só relativa a investigações no embrião, para benefício da vida no estado embrionário; nunca investigações com o embrião, como a extracção, do corpo embrionário, de células estaminais para finalidades e objectivos alheios à procriação. As células estaminais de origem não embrionária realizam já, no presente, as possibilidades terapêuticas pretendidas, no futuro, com o uso de células estaminais obtidas com a destruição de embriões humanos.


Eutanásia/Bioética