Pe. José Nuno, Coordenador Nacional das Capelanias Hospitalares
Direito dos doentes, dever da Igreja, indeclinável compromisso do Estado
Há dez anos, o Pontifício Conselho para a Pastoral da Saúde publicou a Carta dos Profissionais de Saúde. No n.º 108, afirma o texto: “A acção pastoral é a assistência espiritual e religiosa aos enfermos e constitui um direito fundamental do doente e um dever da Igreja. Não assegurar esta assistência ou fazê-lo de forma discriminatória, não favorecer ou colocar obstáculos à sua realização, constitui uma violação desse direito e uma infidelidade a esse dever”. No n.º 109, este documento-síntese do essencial da reflexão da Igreja sobre a Ética, a Espiritualidade e a Pastoral no Mundo da Saúde, acrescenta: “A assistência religiosa implica, no seio das estruturas de saúde, a existência de espaços e meios adequados para o seu exercício”.
A propósito do XII Dia Mundial do Doente, no ano em que ocorre o 10.º aniversário deste tão importante documento de Pastoral da Saúde, é oportuno reflectir o papel e a importância das Capelanias Hospitalares partindo destas afirmações.
Afirmações que permitem fixar três princípios fundamentais a ter em conta na reflexão transformante que urge fazer em torno desta questão tão premente. Esses três princípios são:
- A assistência espiritual e religiosa é um direito dos doentes.
- A assistência espiritual e religiosa é um dever da Igreja.
- Garantir espaços e meios adequados a esta assistência é um dever das estruturas de saúde.
1. Um Direito dos Doentes
É essencial o reconhecimento deste direito como princípio primeiro para fundamentar a existência de Serviços de Assistência Espiritual e Religiosa Hospitalar. Porque ele centra a atenção na pessoa do doente, precisamente como pessoa, sujeito de uma identidade espiritual e religiosa que, no tempo da doença, adquire um papel primordial no processo terapêutico e no acompanhamento que lhe é prestado – ou devido. Considerar esta dimensão da pessoa doente, salvaguarda a Medicina e a prática dos cuidados como ciência e praxis humanas e humanizantes, evitando eventuais derivas reducionistas assinaladas pela tentação bio-tecnologizante, tão acentuada no tempo que vivemos.
O doente é uma pessoa que se encontra doente e que, ao encontrar-se doente, se encontra com a experiência existencial mais aguda da sua condição humana. Esse é o tempo do aprofundamento, ou do reencontro mesmo, da sua espiritualidade, que é o registo humano onde se conjugam as questões existenciais, traduzidas em busca de sentido. É, pois, inconcebível, que um hospital, lugar deste tempo da vida de todos nós, não disponha de interlocutores especificamente preparados e responsabili-zados para este nível superior de comunicação e acompanhamento. Isto, sem deixar de afirmar que, sendo tarefa específica destes agentes, não é, de modo algum, seu exclusivo. Pelo contrário, faz parte integrante da missão de todos os profissionais que com os doentes se relacionam. É um direito do doente ser considerado e respeitado como pessoa. O que não acontece se isto não acontece.
2. Um Dever da Igreja
É um dever da Igreja acompanhar os seus filhos em todas as situações da sua vida. Corpo de Cristo, não pode não dar continuidade em si mesma à opção claramente preferencial do seu Senhor pelos doentes, como no-l’O mostram os Evangelhos, que nos conduzem a reconhecer nesta opção de Jesus, traduzida em palavras e gestos com categoria de sinais, a manifestação mais evidente da presença do Reino de Deus entre nós e da Salvação – integral – que o Pai oferece à humanidade.
Assumir mal ou insuficientemente este dever de assistir espiritual e religiosamente os doentes, significaria para a Igreja faltar basicamente a uma dimensão constituinte essencial da missão que o seu Senhor lhe confiou.
É nestes termos que deveremos pensar, como comunidade eclesial, a questão das Capelanias Hospitalares. Em tempos de descristianização da sociedade, que são tempos que nos fazem proclamar – em comunhão com João Paulo II, o Papa da Pastoral da Saúde, como justamente lhe chamou o Padre Vítor Feytor Pinto, na evocação que faz do seu pontificado para o número experimental do Boletim das Capela-nias – a urgência de uma Nova Evan-gelização, importa reafirmar este dever da Igreja, lendo nele a indicação de um rumo a privilegiar na definição – consequente! – das prioridades pastorais.
Algumas questões, a partir da citação feita da Carta dos Profissionais de Saúde, poderiam e deveriam ser reflectidas por todos na Comunidade Eclesial, já que esta tarefa é uma tarefa de toda a Igreja. E deveriam ser particularmente reflectidas por todos os que temos a obrigação específica de cumprir este dever da Igreja que é um direito dos doentes. Mas será o que fazemos? E será que o fazemos na atitude de abertura e integração que o texto citado pede, promovendo, como única presença institucional desta dimensão no mundo dos hospitais, o reconhecimento activo deste direito fundamental dos doentes, qualquer que seja a sua opção espiritual? A situação concreta da sociedade portuguesa responsabiliza-nos, como sujeitos dos Serviços Religiosos Hospitalares, por mais do que os filhos da Igreja. Neste Dia Mundial do Doente de 2004, o ano em que ocorre o 10.º aniversário da Carta dos Profissionais de Saúde, importa voltar às suas páginas e deixarmo-nos interpelar, disponíveis para a conversão, pela afirmação que delas nos chegam: a assistência espiritual e religiosa dos Doentes nos hospitais, para além de ser um direito dos Doentes, é um dever da Igreja. O que há a fazer? O que deve mudar? Que prioridades urge redefinir?
3. Um Compromisso das Estruturas de Saúde
A saúde é uma realidade global e prestar cuidados de saúde implica abrir-se à integridade da pessoa. As estruturas de saúde não podem, pois, furtar-se ao compromisso com este serviço à totalidade da pessoa do doente. Isto, a acontecer, significaria operar uma redução do próprio conceito de saúde, de consequências éticas inaceitáveis, até porque constituiria a expressão óbvia de um reducionismo antropológico de base, que tudo poria em causa. Efectivamente, não se serve bem o Homem que se concebe mal. E amputar dos cuidados de saúde o acompanhamento espiritual e religioso significaria esse défice antropológico e, consequentemente, ético.
As estruturas de saúde, concretamente o Serviço Nacional de Saúde e todas as instituições que o compõem, de um modo especial os Hospitais e os Centros de Saúde com internamento, a Rede de Cuidados Continuados, que começa a afirmar-se no terreno, não podem alhear-se desta dimensão. É iniludível a questão dos espaços e dos meios – humanos, materiais, econó-micos – no seio das instituições de saúde. Espaço e meios especificamente dedicados a esta dimensão da saúde que a doença torna crucial.
Nestes tempos de transformações profundas e rápidas nos modelos de gestão dos hospitais, esta questão não pode não ser equacionada. Porque é um direito dos doentes! Porque é componente essencial do conceito de saúde que deve enformar a prática de cuidados.
A prestação de cuidados de saúde é assumida constitucionalmente pelo Estado como serviço público; como tal permanece, qualquer que seja o modelo de gestão aplicado nos hospitais e instituições afins. A indefinição legal face à subsistência dos Serviços Religiosos Hospitalares nos Hospitais S. A. estará em vias de ser resolvida. A inclusão desta questão no Plano Nacional de Saúde, neste momento em fase final de elaboração, é um sinal auspicioso que permite esperar uma valorização efectiva do Acompanhamento Espiritual e Religioso nos Hospitais em Portugal. Aliás, a busca de Qualidade que se afirma nortear o desenvolvimento do Sistema, não pode deixar de se revestir desta concretização.
Concluindo
A propósito do XII Dia Mundial do Doente, momento em que as Capelanias Hospitalares tanto investem pastoralmente, a concluir esta reflexão, que partiu desse notável Documento que é a Carta dos Profissionais de Saúde, no ano do seu 10.º aniversário, há razões para confiar que o papel das Capelanias – direito dos doentes, dever da Igreja, compromisso indeclinável do Estado – se reafirmará e aprofundará.
Porque, de facto, a Espiritualidade é um Desafio no Hospital, como se reflectirá no I Seminário Nacional organizado pela Coordenação Nacional das Capelanias Hospitalares, que ocorrerá na Aula Magna da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, a 17 e 18 de Fevereiro. Também na Doença, a Espiritualidade é uma Forma de Encontro, como propõe para este Dia Mundial do Doente, a Comissão Nacional da Pastoral da Saúde. E qual é o cerne do processo terapêutico, o elemento nuclear que torna humana a relação entre o doente e aquele que dele cuida? Não será precisamente o Encontro? E poderá o Encontro ser humano se não for espiritual?
Ao serviço deste Encontro: eis o lugar das Capelanias nos Hospitais!
Pe. José Nuno, Coordenador Nacional das Capelanias Hospitalares