Dossier

Branco no preto: experiência de aculturação

Ana Teresa Forjaz
...

Ana Teresa Forjaz - Instituto de Solidariedade e Cooperação Universitária

Branco no preto: experiência de aculturação Fins de Julho de 2002, um avião leva-me para África, mais precisamente para a Guiné-Bissau. A mim e a outros cinco voluntário do ISU (Instituto de Solidariedade e Cooperação Universitária), com quem preparei um projecto de voluntariado para a cooperação, com a duração de dois meses. A expectativa era grande e apesar de toda a formação recebida e preparação relativa à diferença de culturas, o choque cultural não deixa de lá estar. Sensações estranhas percorreram a nossa estadia, pois se em Portugal um africano é alguém diferente, em África a diferença reside no europeu. E constantemente somos lembrados dessa diferença, justamente. Recordo-me de ter passeado pela primeira vez em Bula, vila que nos acolheu, e de uma criança ter gritado “Branco, branco!” quando nos viu passar à beira da estrada. Felizmente estava com o Pedro, que não era novato nestas lides, e muito naturalmente respondeu à criança “Preto, preto!”. E ali se desmistificou a diferença da nossa cor. Durante o projecto necessitámos de nos deslocar várias vezes a Bissau. O percurso era feito através da rede local de transportes públicos, isto é, uma “candonga” (carrinha ou camião de caixa aberta) até João Landim, a canoa para atravessar o rio Mansoa, e outra candonga para Bissau. As pessoas estranhavam nós irmos lá atrás no meio dos passageiros todos, em vez de pagarmos mais caro e apanharmos um carro privado ou irmos no lugar da frente. Mas sempre fomos acarinhados, e prontamente nos indicavam onde tínhamos que pôr as mochilas, quanto e quando tínhamos que pagar, certificando-se que não pagávamos mais do que o preço normal, e nos indicavam onde devíamos sair. A noção de espaço que trazíamos de Lisboa foi rapidamente substituída por uma bem mais estreita e onde cabe sempre mais um. Por vezes era exageradamente estreita e recordo-me daquela viagem em que num autocarro de 17 lugares viajávamos cerca de 50 pessoas, uns por cima dos outros, ao colo. Numa situação destas, ou se ri ou se chora. Consegui rir, houve quem não. Mas o dia-a-dia era passado em Bula, para uns, entre a casa e as aulas aos professores, e para outros, na biblioteca, a organizar livros e a dar formação aos bibliotecários. Todos os dias passávamos no mercado a comprar pão e algo mais para o almoço ou jantar. Lembro-me que procurávamos não exibir a quantidade de comida que comprávamos, pois tínhamos consciência que família nenhuma comprava seis pães todos os dias, como nós o fazíamos. Nestas idas era frequente encontrarmos os professores a quem dávamos aulas, que orgulhosamente nos cumprimentavam, ou acompanhavam-nos em parte do trajecto. Pelo caminho íamos conversando, comparando vivências e a noção que temos das coisas que nos rodeiam. Por vezes, e segundo o costume guineense, passavam à tardinha pela nossa casa e ali ficávamos a conversar à porta de casa, e mesmo que nada houvesse para dizer, a companhia é coisa importante, nem que seja para ver em conjunto, quem passa na estrada. Nos últimos dias destes dois meses ricos em trabalho, amizades e aculturação, recordo-me que um grupo de crianças avistou-nos com as nossas máquinas fotográficas. Histéricos de alegria, correram para nós, pedindo que lhes tirássemos uma fotografia. Mas ao invés do habitual “Branco, branco!” desta vez, um deles gritou “Branco, preto, branco, preto” e senti-me aceite, no meio da diferença. Ana Teresa Forjaz Instituto de Solidariedade e Cooperação Universitária (ONGD portuguesa


Guiné-Bissau