Dossier

Caridade e justiça, Igreja e Estado, fé e política

Hermínio Rico
...

Esta encíclica tem como tema a relação intrínseca e directa entre a experiência acolhida do amor de Deus e a actuação do amor ao próximo, organizada na Igreja através do "serviço da caridade". O objectivo é suscitar "um renovado dinamismo de empenhamento" (n. 1) nesta actividade caritativa da Igreja. As reflexões sobre a tríplice díade do título aparecem, nos nn. 26 a 29, em resposta às opiniões que valorizam exclusivamente o esforço pela construção da ordem da justiça: esta, por si só, uma vez realizada, dispensaria a caridade, apenas paliativa e, às vezes, prolongadora da injustiça. Os argumentos subsequentes procuram enaltecer, face a esta objecção, o valor e a necessidade da acção caritativa da Igreja, daí apresentarem algum enviesamento no tratamento da relação entre caridade e política, como veremos. O "empenho em prol da justiça" não é menos necessário ou importante que o "serviço da caridade", mas competem primordialmente a duas instâncias distintas: primeiro ao Estado, segundo à Igreja. Reafirma-se a doutrina do Vaticano II da legítima e necessária separação entre Estado e Igreja, mas vivida em relação de cooperação recíproca ao serviço da pessoa e do bem-comum. A forma como é apresentada esta colaboração recíproca é particularmente clara, correndo até o risco de ser demasiado taxativa nas distinções. Por um lado, "a Igreja não pode nem deve tomar nas suas próprias mãos a batalha política", essa é atribuição do Estado, "mas não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça". Contribui para ela através da sua doutrina social. Esta, a partir do encontro com Deus na fé que clarifica o funcionamento da razão, forma a consciência na política, ajuda a perceber as verdadeiras exigências da justiça e faz crescer a disponibilidade para agir. Pela "via da argumentação racional", discorrendo "a partir da razão e do direito natural", mas despertando "as forças espirituais", a Igreja oferece, "por meio da purificação da razão e através da formação ética, a sua contribuição específica para que as exigências da justiça se tornem compreensíveis e politicamente realizáveis" (n. 28.a). Trata-se de uma formulação programática particularmente estimulante da função da Doutrina social da Igreja. Ao Estado, em obediência ao princípio de subsidiariedade, compete-lhe ser não "um Estado que regule e domine tudo", mas "que generosamente reconheça e apoie" as iniciativas sociais movidas pelo amor e sempre necessárias, mesmo na sociedade mais justa, nomeadamente a acção caritativa da Igreja (n. 28.b). Concluindo, no n. 29, afirma a encíclica que "a formação de estruturas justas não é imediatamente um dever da Igreja, mas pertence à esfera da política", é apenas um dever mediato, já que "é próprio dos fiéis leigos. Estes, como cidadãos do Estado, são chamados a participar pessoalmente na vida pública." À afirmação do que pode distinguir as funções da "Igreja" e dos "fiéis leigos" fica a faltar, talvez, um sublinhar duma unidade complementar e dificilmente circunscrita. Assim como permanece o desejo de que a reflexão feita sobre a união entre amor a Deus, o amor ao próximo e o serviço eclesial organizado da caridade seja também aplicada, com a mesma riqueza e profundidade, à relação destes mesmos amores com a política e a ordem da justiça, laços que documentos anteriores do magistério social já estabeleceram. São aberturas que esta belíssima encíclica deixa, em expectativa de desenvolvimentos futuros, e já como estímulo à reflexão (e à vivência) de toda a Igreja. Hermínio Rico SJ, Director da revista Brotéria - Cristianismo e Cultura


Bento XVI