Dossier

Conciliar o direito da vida humana emergente e o da mulher

Maria do Rosário Carneiro
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Maria do Rosário Carneiro, Deputada

A complexidade das questões que o debate sobre a interrupção da gravidez levanta, a extrema importância e delicadeza, do que está em jogo, pede mais serenidade do que aquela que se tem verificado no debate público. Bem pelo contrário, a intensidade que tem marcado os discursos, não tornou contudo as convicções proclamadas nem mais justas, nem necessariamente mais inteligíveis. São sem dúvida, convicções nos valores essencialmente estruturantes de uma comunidade, que determinam o sentido legítimo da intervenção politica, a elevação democrática da contraposição de ideias, e que fundamentam a intransi-gência na sua defesa, na definição dos limites de referência que devem reger a nossa conduta, a nossa intervenção. Mas é importante recolocar o que está em causa. Trata-se de um debate onde se avalia do confronto de duas realidades: duas vidas com direitos próprios, numa definitiva situação de complementaridade de interesses na realização de uma ordem humana sábia, mas que em casos excepcionais pode redundar em conflito. E o conflito é, nestes casos limite, muito claro - o direito da vida emergente, indesmen-tivelmente humana e a opção da mãe que a rejeita. A interrupção da gravidez não atinge uma coisa abstracta, uma qualquer entidade indefinida; atinge sim, uma vida nova que se transporta, que é naturalmente dependente, não autónoma, mas já específica e portadora de um ADN singular. E é nesta insuperável verdade que tem que se situar o debate. A salvaguarda da vida humana emergente, comprovada aliás pelos constantes progressos científicos, e a percepção clara de situações limite de intenso sofrimento, solidão e impotência em que se encontram tantas mulheres. As propostas relativas ao alargamento dos prazos e das condições em que é possível interromper a gravidez privilegiam o exercício incondicional de um direito sobre um outro, frágil, que não tem voz. Trata-se de um exercício desproporcionado. É uma violência incondicional, sem legitimidade, porque se exerce contra quem não se pode defender, contra quem não pode optar. A sociedade portuguesa está perante um debate marcado por radicalismos inconsequentes, está perante uma situação marcada pelo impasse político. É nossa responsabilidade indeclinável apresentar propostas que reflictam um esforço sério para resolver este conflito: o direito à dignidade da vida da mulher não pode por em causa o direito à integridade da vida do ser que está para nascer. Impõe-se um esforço sereno e generoso de procura das soluções possíveis que preservem o quadro de valores que é nossa matriz, mas que se traduzam em valor acrescentado para as leis, de forma a que estas possam assegurar direitos fundamentais e minorem o sofrimento das mulheres. Estamos perante os elementos de um, tantas vezes, incontornável dilema moral: a aplicação objectiva das leis e da justiça, por um lado, e a actuação determinada pela percepção subjectiva e compassiva das circunstâncias determinantes dos ilícitos praticados, por outro. Trata-se de procurar aplicar a justiça, sem hesitar na defesa dos princípios, mas tendo em consideração as circunstâncias individuais, a salvaguarda da dignidade, a ponderação de alternativas inclusivas. Trata-se de um imperativo de humanidade. A densidade das questões confrontadas, leva-nos a equacionar uma alternativa, que representando um esforço de aproximação e de concertação, propõe um avanço legislativo que deixa intocada a proeminência do valor da vida humana. Procura-se uma outra face mais humana da justiça, em que o juízo de censura serve para apontar também o caminho da ajuda, em lugar de conduzir simplesmente à punição. Propomos pois, para as situações de interrupção da gravidez ocorridas nas primeiras 10 semanas, a suspensão provisória do processo desde que a mulher aceite a suspensão e aceite participar num programa próprio de enquadramento e acompanhamento, que poderá ser de planeamento familiar e ou de inserção social, conforme as circunstâncias. Procura-se, assim, actuar a montante sobre as circunstâncias que poderão ter determinado a prática do ilícito, desencadeando uma intervenção que busque activamente remover as causas que o determinaram e que inclua responsavelmente a mulher e, eventualmente, o seu companheiro. Esta é uma proposta que pensamos servir o propósito de um diálogo aberto e construtivo para que se salvaguarde o direito à vida e o direito à dignidade da vida da mulher. Procura-se assim actuar sobre as circunstâncias que poderão ter determinado a prática do ilícito, desencadeando um sistema de intervenção que procure activamente remover as causas e que inclua responsavelmente a mulher e eventualmente o seu companheiro. Não havendo motivo determinante do imediato arquivamento do inquérito, o Ministério Público ordena obrigatoriamente a suspensão provisória do processo verificados os seguintes pressupostos: a) O facto ter ocorrido nas primeiras 10 semanas de gravidez; b) A pessoa inquirida concorde com a suspensão do processo e aceite a integração num programa de acompanhamento de planeamento familiar e ou inserção social, consoante as circunstâncias. Aplica-se o disposto no n.º 5 do artigo 281º e no artigo 282º do Código do Processo Penal, podendo o Ministério Público recorrer aos centros de saúde ou de segurança social da área de residência da pessoa para os efeitos previstos no n.º 4 do artigo 281º do Código do Processo Penal. Maria do Rosário Carneiro, Deputada


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