Dossier

Concordata e Constituição

Jorge Miranda
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Comentário de Jorge Miranda, Constitucionalista

I Uma leitura atenta da Concordata de 1940 mostra que a quase totalidade das suas normas, se correctamente interpretadas - quer dizer, em moldes objectivos, sistemáticos e actualistas - não contradizem os princípios de liberdade e igualdade da Constituição de 1976 (art. 2º, 13º, 41º, etc.). São poucas as normas que devem ter-se por inconstitucionais. No art. 1º, Portugal reconhece a personalidade jurídica da Igreja Católica - a qual, no contexto do preceito, é uma personalidade de direito internacional e não de direito público interno. Os arts. 2º e 3º, 1ª parte, garantem à Igreja o livre exercício da sua autoridade na esfera da sua competência e o direito de se organizar de harmonia com o Direito canónico. Os arts. 3º, 2ª parte, e 4º garantem a livre constituição, a personalidade jurídica e a livre actuação das associações e organizações da Igreja. O art. 5º garante à Igreja o direito de cobrar colectas dos fiéis. Os arts. 6º e 7º garantem à Igreja a posse dos seus bens, designadamente templos e objectos de culto. O art. 8º estabelece isenções fiscais relativamente aos templos, seminários e eclesiásticos. Os arts. 9º e 10º enunciam duas regras sobre arcebispos e bispos residenciais: que têm de ser cidadãos portugueses e que, antes da sua designação, a Sana Sé comunicará o seu nome ao Governo a fim de saber se contra eles há "objecções de carácter político geral". O art. 11º estabelece que, no exercício do seu ministério, os eclesiásticos gozam de protecção do Estado, nos mesmos termos das autoridades públicas, e o art. 15º prevê a punição do uso do hábito eclesiástico e do exercício abusivo da jurisdição e de funções eclesiásticas. O art. 12º garante o sigilo religioso. O art. 13º garante aos eclesiásticos isenção de certos cargos considerados pelo Direito canónico incompatíveis com o estado eclesiástico e o art. 14º prevê a prestação de serviço militar sob a forma da assistência religiosa e sanitária. O art. 16º garante a liberdade de culto. O art. 17º garante a assistência religiosa nos hospitais, escolas, prisões e estabelecimentos similares e o art. 18º nas Forças Armadas. Pelo art. 19º o Estado compromete-se a tornar possível a todos os católicos ao seu serviço o cumprimento regular dos deveres religiosos nos domingos e dias festivos. O art. 20º garante a livre criação de escolas e seminários pela Igreja e a não dependência de autorização do ensino religiosos nas escolas particulares. O art. 21º, 2ª parte, garante o ensino da religião e moral católicas nas escolas públicas não superiores e nos asilos, orfanatos e estabelecimentos de educação de menores quanto aos alunos cujos pais, ou quem suas vezes fizer, não tiverem feito pedido de isenção. O art. 21º, 3ª parte, prevê a colaboração do Estado e de entidades eclesiásticas na organização deste ensino. Pelos arts. 22º a 25º o Estado reconhece efeitos civis aos casamentos canónicos, observados certos requisitos. O art. 24º inicial impedia o divórcio dos casados canonicamente, mas foi alterado pelo Protocolo Adicional de 1975. Os arts. 26º a 28º dizem respeito aos territórios ultramarinos portugueses. Após a descolonização, só iriam aplicar-se em Macau (até 1999) e de jure em Timor Leste. E o mesmo se diga do Acordo Missionário. II Verifica-se, à luz dos parâmetros constitucionais, o seguinte: a) O art. 1º da concordata é uma mera norma declarativa, cuja eficácia na ordem interna portuguesa deriva da integração sistemática do direito internacional e do direito interno; o seu interesse é emblemático no confronto do regime de 1911; b) As normas dos arts. 2º a 8º, 12º a 14º e 16º a 20º são conformes a obrigação constitucional do Estado de não só respeitar, negativamente, a liberdade religiosa dos cidadãos e das confissões mas também de proporcionar, positivamente, a prática de actos em que ela se traduz.; c) Tais normas podem e devem estender-se, por lei ou por acordos livremente celebrados, às confissões não católicas, feitas as necessárias adaptações e tendo em conta as dificuldades resultantes de, muitas vezes, serem confissões com escassos fiéis e escassos meios; d) Da mesma maneira, com essas condições, poderiam os casamentos religiosos não católicos ser reconhecidos pelo Estado (em sintonia com o art. 36º, n. 2, da Constituição e aproveitando, por analogia, algumas das regras dos arts. 22º a 25º da Concordata); e) De qualquer modo, os arts. 2º, 3º, 4º, 22º, 23º e 25º devem também ser compreendidos à face do postulado do pluralismo das ordens jurídicas e da não exclusividade da ordem jurídica estadual; f) Em contrapartida, os arts. 9º e 10º são manifestamente inconstitucionais, por envolverem uma intervenção do Estado na vida interna da Igreja Católica; g) Os arts. 11º e 15º são, em parte, inconstitucionais - não por o Estado assumir um dever de protecção dos ministros da religião e dos hábitos religiosos (o que deveria ser extensivo a outras confissões), mas por equiparar essa protecção à dos funcionários públicos; h) h) São também inconstitucionais, à face do art. 43º da Constituição, o artº. 21º, 1ª parte, e a exigência do pedido de isenção por quem não queira ensino religioso; não o próprio ensino religioso; nas escolas públicas e a colaboração, para o efeito, com a Igreja; i) Os art. 26º e 28º são normas historicamente situadas, com que se pretende preservar não tanto interesses da Igreja Católica quanto interesses do Estado Português. III O entendimento dominante e acolhido pelos órgãos de fiscalização da constitucionalidade (sobretudo no acórdão nº 423/87 do tribunal Constitucional) é que os princípios constitucionais se compadecem com um tratamento diferenciado das várias confissões, em razão do modo como elas se encontram difundidas entre as pessoas ou do peso real que têm na sociedade. O que não admitem, em caso algum, é um tratamento privilegiado ou, ao invés, discriminatório desta ou daquela confissão. Conquanto as fronteiras entre as duas formas de disciplina não sejam fáceis, é evidente que elas não se confundem. Um tratamento privilegiado concederia a uma pessoa ou entidade direitos que outras não teriam; um tratamento diversificado ou especializado não afectará a qualidade dos direitos e deveres reconhecidos, apenas os dará numa medida, em condições de exercício ou segundo estruturas organizatórias diferentes consoante as diferentes situações e entidades. Um tratamento privilegiado para uns e discriminatório para outros conduziria ao arbítrio; um tratamento diferenciado, pelo contrário, repele o arbítrio, desde que assente numa cuidadosa ponderação de situações e valores. O essencial está, pois, em que o princípio da liberdade, em todos os aspectos, valha para todas as confissões, seja qual for o número de fiéis, e que toda as organizações religiosas gozem dos mesmos direitos constitucionais e legais. Mas o princípio não impede a subsistência de regras específicas e imediatamente dirigidas à Igreja Católica - por força da sua realidade histórica e sociológica - desde que estas regras correspondam a critérios de objectividade, necessidade e adequação. IV Independentemente de outras considerações, pode dizer-se que a Concordata representou no período imediato subsequente a 1974, marcado por instabilidade, um importantíssimo factor de enquadramento e de segurança jurídica; e que, celebrado o Protocolo Adicional de 1975, este foi também entendido como uma sua confirmação. Em larga medida por inércia ou por receio de qualquer eventual desequilíbrio, a situação iria manter-se até hoje. Só nos últimos anos se vem sugerindo (de dentro e de fora da Igreja) a necessidade ou a conveniência de uma revisão ou da celebração de uma nova Concordata, ajustada aos novos tempos - ajustada quer pela supressão de normas inconstitucionais ou ultrapassada, quer pela formação de novas normas sobre matérias que a exijam (v.g. a Universidade Católica, o património cultural, a televisão). Resta esperar que em 2000, sem dramatismo nem precipitação, mas com serenidade e em tempo útil, uma nova Concordata possa ser estabelecida. Jorge Miranda Constitucionalista


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