Dossier

Conhecimento e possibilidade

Ruben de Freitas Cabral
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Séculos e milénios de estudo e de experiência não conseguiram ainda resolver o debate sobre o papel da religião na sociedade. Vivemos hoje, tal como ontem e anteontem, um mundo profundamente ferido e esventrado por essa contenda. Fala-se continuadamente da tolerância como panaceia, e do diálogo como o processo mais profícuo para uma possível resolução do conflito. Todavia, mesmo para aqueles que se consideram esclarecidos, tolerantes, secularizados até à medula, a formulação aceitável desta realidade não parece de todo um dado adquirido. Um olhar diacrónico desta realidade permite também perceber que os tolerantes de ontem são muitas vezes os intransigentes de hoje. O que parece permanecer inalterável é o conflito, quantas vezes sangrento e desumanizante, provocado pelas diferentes percepções do que deve ser a dinâmica religião – sociedade. Não sei se fundamentalismo é a palavra mais adequada para definir fenómenos de intransigência, intolerância, miopia cultural, incapacidade dialógica, justificação da violência, totalitarismos ideológicos, e de processos desumanizantes de percepção do mundo. Fundamentalismos de toda a espécie, todavia, continuam a ser a ordem do dia, quer se trate de religião, política, sentidos de nacionalidade, ou futebol. E o número de ismos e dos seus adeptos, se não está a aumentar, consegue com facilidade impor-se nas agendas dos noticiários, alterar profundamente padrões do quotidiano, criar estados de ansiedade difíceis de gerir. Por outro lado, intransigências tendem a gerar outras intransigências, e num mundo cada vez mais complexo, e, por conseguinte, cada vez mais aberto e imprevisível, ideologias e posicionamentos que apregoam certezas e universos contidos não deixam de apelar ao número crescente daqueles que se sentem confusos, frustrados, ou mesmo traídos nas suas aspirações. Um mundo de certezas é um mundo fácil e aparentemente seguro. As certezas, contudo, quando fundamento ideológico, dão origem a espaços contidos, fabricados, subjugantes, em que a vontade se esgota no seguidismo, a liberdade na escravatura do intelecto, e a esperança na conformidade dos dias sem conteúdo. Tais espaços nem são espaços de possibilidade, nem espaços de fé. Se bem que a fé, se alicerce em absolutos - na certeza do amor incondicional de Deus, por exemplo - ela afirma-se num questionar constante do que significa a sua vivência, e do sentido que essa mesma fé pode e deve ter na maneira como perspectivamos horizontes e construímos um mundo melhor. É esse questionamento que transforma mundos fechados em mundos de possibilidades, mundos que, através da nossa acção fertilizante, se transformam em ambientes dignos e prenhes de humanidade. Ora acontece que o mundo das nossas escolas é quase sempre um mundo de respostas, geralmente aceites como certezas insofismáveis. Raramente pedimos às nossas crianças que se questionem sobre o mundo que as rodeia, que explorem conjuntamente a realidade que as envolve, que proponham hermenêuticas com significado. O mundo da escola é gerido por objectivos, conteúdos, e resultados estabelecidos por outros, e só excepcionalmente proposto e gerido em diálogo aberto. Este tipo de educação define-se pela esterilidade, pela alienação, por um fundamentalismo tecnológico, em que o acto de aprender e de ensinar, de educar e de agir, se pautam quase que unicamente pelo cumprimento de processos administrativos. Uma pedagogia de respostas não permite um mundo de perguntas, de possibilidades, e, por conseguinte, um mundo de fé. Uma educação humanizante tem de ser transcendente, tem de apelar a dimensões cada vez mais elevadas de percepção consciente do mundo, de conhecimento verdadeiramente compreendido, de procura da espiritualidade que nos autentica como homens e mulheres. Talvez seja muito difícil, e politicamente incorrecto, mudar paradigmas escolares sustentados por pseudo-políticas de liberdade, mas é sempre tempo para mudar a educação dos nossos filhos. Ruben de Freitas Cabral, Reitor do Instituto Inter-Universitário de Macau


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