Guilherme d’Oliveira Martins, Presidente Centro Nacional de Cultura
Quando a onda dos nacionalismos românticos varreu a Europa central no movimento que culminou na Primavera dos Povos de 1848, cada uma das nações que integrava o Império Austro-Húngaro reivindicou uma democracia constitucional. A ordem da Paz de Vestefália (1648) e do Congresso de Viena (1815) deu, assim, lugar a uma tendência autonomista e fragmentária, centrada na ilusão de que assim se conseguiria a emancipação em relação às diversas tentações hegemo-nistas. Em Viena, chegou então ao fim o longo Ministério de Clemente Metternich, que vinha desde 1809, e que terminou ingloriamente com a fuga do governante num cesto de roupa suja, para sobreviver à sanha da populaça. Metternich praticara a regra, velha na Europa, como disse o próprio Maquiavel, de “dividir para reinar”. Começou, então, o processo de unificação da Alemanha e de ascensão dos Hohezollern, perante o “apocalipse alegre” dos Habsburgos…
A História é bem conhecida. Até 1914, a Europa central viveu em ebulição. Bismarck procurou uma ordem contida pela “realpolitik”, sem excessos. Mas o imperador Guilherme II fez da impaciência a sua regra e lançou a Europa num inferno, em que ninguém acreditava, já que os “pactos de família” pareciam proteger o velho continente do desastre. Desde 1914 até 1945 a Europa viveu mergulhada numa nova e muito mais terrível guerra dos trinta anos. E, se houve tréguas falsas em 1919, o certo é que a violência recrudesceu depois mais cega e destruidora do que nunca. O projecto europeu de 1948, do Congresso de Haia, e a declaração de Robert Schuman, de 9 de Maio de 1950, procuraram fechar o melhor possível um terrível ciclo de guerra. Nasceu a pequena Europa e o euro-peísmo deixou de ser um movimento utópico para passar a ser uma política assente nas lições da História. Mais do que a Primavera dos Povos, seria necessária uma Comunidade, baseada no Direito, no equilíbrio de poderes de Montesquieu e na descentralização de Alexis de Tocque-ville – que Winston Churchill definiu como uma espécie de Estados Unidos da Europa. A guerra fria dominou a reconstrução europeia e fortaleceu-a. Sem Império, o Reino Unido teve de se aproximar da Comunidade, que inspirara, mas da qual se mantivera à distância.
Em 1989, a queda do muro de Berlim abriu as portas a uma nova arquitectura europeia – onze anos depois de o polaco Karol Woytila ter sido eleito Papa. O sucesso da Comunidade Europeia, o mercado interno, a moeda única tornaram-se referências para todo o continente. Vaclav Havel ou Bronislaw Geremek juntaram-se a Mário Soares e a Felipe Gonzalez, a Jacques Delors, a François Mitterrand e a Helmut Kohl como novos pais fundadores da Europa. Ouviram-se, de novo, os ecos da declaração do velho “inspirador” Jean Monnet: “o essencial é manter-se fiel aos poucos pontos fixos que nos serviram de guia desde o primeiro dia: criar progressivamente entre os homens da Europa o mais amplo interesse comum gerido por instituições comuns democráticas às quais é delegada a soberania necessária”. O percurso para uma Europa Unida não tem retorno – ainda que não saibamos qual o ritmo e qual o perfil exacto das instituições futuras. Nesse sentido, foi fundamental que o Conselho Europeu de Bruxelas tenha aprovado o Tratado Constitucional para a União Euro-peia. A História faz-se de passos seguros, muitas vezes inesperados.
Temos, pela primeira vez, uma Constituição Europeia formal. É um facto importante. No entanto, há muito que existe uma Constituição Europeia material, que define uma soberania livremente compartilhada e poderes próprios da União. Teremos ainda uma Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, com força obrigatória e uma União com personalidade jurídica de Direito Internacional, que poderá ser parte na Convenção Europeia dos Direitos Humanos, e teremos um Tratado legível para o comum dos cidadãos, com disposições e procedimentos mais simples e acessíveis. E a verdade é que o que acaba de ser conseguido deve-se ao trabalho da Convenção para o Futuro da Europa, que rompeu com o método do secretismo na preparação das Conferências Intergovernamentais.
Uma União de Estados e Povos livres e soberanos precisa de uma Magna Carta – que clarifique as fronteiras dos poderes soberanos (europeu e nacionais), que consagre a cidadania europeia, que articule eficácia e democracia, que salvaguarde o respeito pelos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade, que dê aos cidadãos e aos parlamentos nacionais voz activa, que permita a adopção de políticas visando a coesão económica, social e territorial, bem como o pleno emprego, a competitividade, a equidade e a justiça. Mais importantes do que o debate constitucional são, porém, as políticas europeias que pudermos concretizar no novo quadro. É certo que ficámos aquém do desejável, mas preservou-se o essencial do texto da Convenção. O sistema de voto no Conselho (55% dos membros, 65% da população) cede à tentação de privilegiar a formação de minorias de bloqueio (com um mínimo de quatro Estados), em lugar da criação de maiorias positivas de defesa dos interesses comuns. Não se consagra o embrião do Senado – um Conselho legislativo, que Valéry Giscard d’Estaing apoiou. A Comissão continuará a ter um membro por Estado e só passará a 18 membros em 2014. Não se avança na coordenação das políticas económicas. Insiste-se no veto nas políticas externa, de segurança comum e de defesa – o que poderá agravar a incapacidade europeia na ordem internacional. O certo é que o novo Tratado Constitucional salvaguarda as soberanias nacionais e clarifica a soberania europeia, podendo abrir caminho (ainda que tímido) à criação de uma vontade comum europeia, assente em duas legitimidades, a dos Povos (ou dos cidadãos) e a dos Estados. Em lugar da lei da força de uma política intergover-namental ditada pelas ilusões de 1848 ou por um directório de grandes (que só será reforçado com défice democrático e com falta de método comunitário), é preciso criar instrumentos que os cidadãos compreendam e que estejam ao seu alcance.
Uma das últimas conversas que tive com António Sousa Franco foi exactamente sobre este tema. Antecipámos, no essencial, o resultado obtido. Apesar de faltar mais coordenação nas políticas económicas e o reforço do “método comunitário”, foi um bom resultado – para todos, mas também para um País como Portugal. Falta agora mais acompanhamento dos Parlamentos nacionais, maior ligação com o Parlamento Europeu, para que os cidadãos se sintam, de facto, representados. Foi então que o meu interlocutor lembrou Robert Schuman e o seu idealismo – e disse-me que é nesse campo que temos de continuar a trabalhar, para mobilizar os cidadãos. A paz, o desenvolvimento e a diversidade cultural têm de ser o nosso horizonte de esperança.
Guilherme d’Oliveira Martins, Presidente Centro Nacional de Cultura