Dossier

Contributo para o diálogo ecuménico e inter-religioso

João Duque
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É evidente que o contributo do longo pontificado de João Paulo II, quer para o diálogo ecuménico (ou seja, o diálogo da Igreja católica com outras confissões cristãs) – quer para o diálogo inter-religioso (diálogo do cristianismo com todas as grandes tradições religiosas do mundo), não pode ser abordado de forma satisfa-tória num pequeno artigo. Quer pelo seu carisma próprio, quer pelo longo período em que ocupou a sede romana, quer pelo contexto histórico em que se enquadrou, é de adivinhar que estas duas vertentes da atitude dialogante da Igreja, especialmente assumidas pelo pontífice, terão que ser riquíssimas. Limitar-me-ei, nestas curtas linhas, a recordar alguns elementos que me parecem mais salientes. 1. Diálogo ecuménico O movimento ecuménico foi, sem dúvida, uma das características mais marcantes do cristianismo do séc. XX. A Igreja católica assumiu oficialmente esse movimento por ocasião do Concílio do Vaticano II. Seguiram-se numerosas iniciativas, quer de pessoas, grupos ou Igrejas particulares, quer da própria cúria romana, sobretudo através de uma diver-sificada participação em comissões mistas, para aprofundamento do diálogo com outras confissões cristãs. João XXIII e, sobretudo, Paulo VI, tinham já dado corpo a muitos sinais de promoção da unidade dos cristãos. Foi nesse mesmo espírito que João Paulo II assumiu a sua tarefa de pastor universal da Igreja católica, como manifestou explicitamente já na escolha do nome. Oriundo de um país marcadamente católico, sempre impressionou pela sua atitude de franco e despreconceituado diálogo com outras Igrejas. Em realidade, porque a sua própria história lhe terá ensinado onde reside o essencial e em que medida, perante os difíceis desafios lançados à Igreja pelo mundo contemporâneo, se torna ridículo ou mesmo prejudicial prevalecer na desunião e no conflito. Em diversas intervenções e iniciativas, manifestou, desde o início, o empenho em continuar no espírito ecuménico que animou o Vaticano II. A sua acção tornou-se, contudo, mais determinante quando, em 1995, publicou a Encíclica Ut unum sint. De facto, o entusiasmo dos primeiros tempos do movimento ecuménico, ao este se sentir confrontado com enormes dificuldades no dia-a-dia do caminho para a unidade, tinha-se esmorecido, levando muitos quase a desistir da esperança de algum dia poder vir a viver-se essa unidade. O documento pontifício constituiu novo impulso, não só para o reatar do diálogo da Igreja católica com outras Igrejas cristãs, como muitas vezes para reacender o diálogo entre elas mesmas. A preocupação ecuménica de João Paulo II tornou-se manifestamente central, sobretudo nos textos de preparação e promoção do Jubileu do ano 2000. Na altura, afirmou claramente: “Neste crepúsculo do milénio, a Igreja deve dirigir-se com prece mais instante ao Espírito Santo, implorando-Lhe a graça da unidade dos cristãos. Este é um problema crucial para o testemunho evangélico no mundo. Eis, portanto, uma das tarefas dos cristãos a caminho do ano 2000... A aproximação do fim do segundo milénio incita todos a um exame de consciência e a oportunas iniciativas ecuménicas, de tal modo que possamos apresentar-nos ao Grande Jubileu, se não totalmente unidos, pelo menos muito mais perto de superar as divisões do segundo milénio. Para tal, é necessário — está à vista de todos — um esforço enorme. Impõe-se prosseguir com o diálogo ecuménico, mas sobretudo empenhar-se mais na oração ecu-ménica.” (Tertio Millennio Adveniente, 34). Mais tarde, recapitula: “No âmbito do programa do ano jubilar, tinha pedido que se desse uma atenção especial também à dimensão ecuménica. Que ocasião mais propícia poderia haver, para encorajar o caminho para a plena comunhão, do que a celebração comum do nascimento de Cristo?” (Novo Millennio Ineunte 12, Cf.: Idem, 48). Entretanto, para além dos encontros entre especialistas e das grandes Assem-bleias Ecuménicas Europeias (1989 e 1997), João Paulo II foi protagonista de inúmeros encontros pessoais com líderes de outras confissões, contribuindo fortemente para o estreitamento das relações institucionais da Igreja católica com elas. O seu papel foi, por isso, essencialmente o de um impulsionador positivo da aproximação, a qual possa ajudar a superar significativas diferenças que, por vezes, originam separação. Da sua parte, sempre insistiu mais no que nos aproxima do que no que nos afasta; e sempre tentou mostrar que as diferenças podem não ser fermento de desunião. Alguns documentos romanos que procuram chamar a atenção para elementos que ainda entravam a união, no sentido de evitar a ilusão de um caminho fácil mas superficial, são documentos que não saíram directamente da pena de João Paulo II, mesmo que tenham sido por ele aprovados. O que demonstra, talvez, a sua firmeza em avançar, mesmo quando não pode ignorar as dificuldades. É sabido que uma das dificuldades mais salientes, no momento actual do diálogo ecuménico, se situa ao nível das diferentes concepções de ministério, sobretudo do ministério «ordenado» e especialmente do ministério petrino. Nos últimos tempos, foi o próprio João Paulo II quem exortou as Igrejas – sobretudo a Igreja católica – a aprofundar ou mesmo a repensar o papel desse ministério, a sua fundamentação teológica e as possíveis formas do seu exercício. Talvez esse apelo possa vir a ser assumido como voz profética que, sendo levada a sério, venha a contribuir para um dos mais significativos passos na aproximação visível das Igrejas cristãs, que há tantos séculos sofrem com a desunião. 2. Diálogo inter-religioso Nos caminhos de diálogo do pontificado de João Paulo II, assume especial destaque o diálogo com outras religiões, já evocado, como programa maior, em importantes textos do Concílio do Vaticano II. O contexto cultural de globalização, assim como de duvidosas relações entre determinadas comunidades religiosas e a violência, exigia-o e o Pontífice sobre ler esse sinal dos tempos, respondendo-lhe em perseverante fidelidade. No cerne das suas motivações esteve a preocupação pela paz no mundo, enquanto realização que entre nós torne presente a «paz», como fundamental dom de Deus à Humanidade inteira. Nesse sentido, teve iniciativas inéditas, quando convidou líderes de outras religiões para jornadas conjuntas de oração pela paz (as mais conhecidas são, sem dúvida, as de Assis, iniciadas já em 1986). Isso contribuiu, inegavelmente, para um testemunho vivo de que a verdadeira atitude religiosa é uma atitude que conduz à convivência entre os seres humanos e, por essa via, ao seio do verdadeiro Deus. É evidente que, no relacionamento com outras tradições religiosas, se levantam, quer à teologia cristã quer à prática quotidiana das comunidades, tantas oportunidades e desafios quantos problemas. Estes estão ainda longe de vislumbrar uma solução satisfatória, apesar da inflação de iniciativas e de publicações. Ao tom dialogante que marcou os encontros de Assis está longe de corresponder idêntica atitude de acolhimento, por parte de muitas tradições religiosas, em muitas partes do globo. No interior da Igreja católica, as posições vão desde o extremo de um certo simplismo nivelador de todas as religiões, com duvidosas releituras do significado da salvação realizada por Deus em Jesus Cristo, até ao extremo daqueles grupos eclesiais que pretendem fechar-se a qualquer aproximação possível (como foi o caso dos que, há tempos e entre nós, se manifestaram contra certas iniciativas do Santuário de Fátima). O percurso parece ainda longo, mas o impulso está dado. Este será, sem dúvida, um caminho a trilhar, no futuro próximo da Igreja, sem enveredar por facilitismos ingénuos nem por posições endurecidas. Esse foi o programa explicitamente legado por João Paulo, cujas palavras ficam a ecoar: “Nesta perspectiva, coloca-se também o grande desafio do diálogo inter-religioso, no qual temos de continuar a empenhar-nos no novo século, segundo a linha traçada pelo Concílio Vaticano II. Nos anos de preparação para o Grande Jubileu, a Igreja tentou, inclusive com encontros de notável relevo simbólico, delinear uma relação de abertura e diálogo com expoentes doutras religiões... O diálogo deve continuar. Na condição de um pluralismo cultural e religioso mais acentuado, como se prevê na sociedade do novo milénio, isso é importante até para criar uma segura premissa de paz e afastar o espectro funesto das guerras de religião que já cobriram de sangue muitos períodos na história da humanidade. O nome do único Deus deve tornar-se cada vez mais aquilo que é: um nome de paz, um imperativo de paz (Novo Millennio Ineunte, 55). João Duque


João Paulo II