Corpo de Deus: feriado ou dia santo?
1. À solenidade do Pentecostes, que encerra o tempo pascal, segue-se o domingo da Santíssima Trindade. Este permite reconduzir todos os acontecimentos da história da salvação à sua fonte: o Deus uni-trino, do qual tudo provém e ao qual tudo regressa. Na quinta-feira seguinte, celebra-se a solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, mais conhecida entre nós por “Corpo de Deus” (o que nem está mal, visto o nosso Deus ser um Deus encarnado, feito um de nós – e a solenidade do Corpo de Deus alerta-nos para esta imanência daquele Absolutamente Transcendente celebrado no domingo anterior). O Corpo de Deus, porém, implica uma outra dimensão: a proximidade. Deus não só encarnou num tempo determinado, em Jesus Cristo, mas quis ficar sempre connosco na sua carne. E ficou, no sacramento da Eucaristia, proclamado pela Igreja “presença real” do Corpo, Sangue, Alma e Divindade do Senhor Jesus Cristo entre nós, pão dos caminhantes que somos em busca de uma outra morada, pois nesta sabemos não ter assento permanente.
2. É de tradição antiga, esta celebração, embora “recente” na história do cristianismo. Vem da Idade Média tardia (séc. XIII) e depressa se tornou uma das grandes solenidades do Senhor no decorrer do ano litúrgico. Não admira que a Igreja a tenha proclamado “dia santo de guarda” (livre do trabalho, para se poder prestar o culto devido a Deus neste dia). E, numa sociedade de intensa fé eucarística, esta solenidade era vivida com particular esplendor: toda a gente se incorporava na procissão do “Corpus Christi”: confrarias ou irmandades, artesãos e comerciantes, nobres e plebeus.
3. Perceber como era vivida esta solenidade ajuda a entender por que razão a mesma se revestiu das cores dominicais de “dia santo de guarda” e consequente feriado civil. Este não era entendido como um favor concedido pelo Estado à Igreja: era uma exigência dos povos para poderem celebrar dignamente a festa de Deus, interrompendo os seus afazeres quotidianos. As rápidas mudanças sociais que Portugal conheceu desde os anos setenta do século passado acabaram, no entanto, por quebrar esta unidade. Para muitos, passou a vigorar apenas a perspectiva do feriado. E alguns reclamavam mesmo da razão de o Estado reconhecer o estatuto de feriado a um dia cuja relevância era percebida apenas por uma parte da sociedade, que o vivia como “santo”, ou seja, separado dos restantes dias comuns. Foi já neste contexto de incompreensão que as necessidades económicas do momento presente e alguma curteza de vistas tornaram possível o fim do “feriado” e do “dia santo”.
4. Neste processo, a minha discordância – mesmo se respeitosa – vai essencialmente para o modo como a Hierarquia da Igreja em Portugal e na Santa Sé tratou a questão dos feriados “religiosos”. Em vez de insistir na “reciprocidade” entre feriados “civis” e feriados “religiosos”, a Hierarquia da Igreja deveria ter trabalhado para acabar com o sofisma inerente a esta designação e valorizar aquilo que lhe é próprio – a santificação de determinados dias, não porque o Estado concede a benesse de os declarar “feriados”, mas porque tais dias são “santos” (separados dos restantes) por razões que dizem respeito à vida da Igreja.
5. O caminho mais difícil, mas também o mais proveitoso, teria sido deixar os feriados ao Estado, como assunto seu, afirmar a continuação dos “dias santos” nos dias próprios e sensibilizar as comunidades cristãs para se organizarem de modo a poder celebrá-los, mesmo sem a ajuda de um feriado civil. O caminho escolhido foi outro e continuou de pé a ideia da equivalência entre “feriado” e “dia santo”. Não admira, assim, se até os domingos deixam de ser tratados, por muitos católicos, como “dias santos”. Com tanta gente a trabalhar aos domingos, haverá certamente católicos nessas circunstâncias. E para estes, na ausência do “feriado”, não deve ser fácil viver o “dia santo”, sobretudo quando a mesma Hierarquia da Igreja insiste na confusão entre um e outro.
Elias Couto
(Artigo escrito de acordo com a antiga ortografia)
Liturgia