Dossier

Cristianismo e cultura

Guilherme d’Oliveira Martins
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Guilherme d’Oliveira Martins, Presidente do Centro Nacional de Cultura

“…alguma coisa oscilaria na habitual monotonia da minha infância.†Ruy Belo, “Toda a Terraâ€. O Concílio Vaticano II deu um sinal, ao atribuir especial importância ao tema da cultura – tradicionalmente incómodo, sobretudo tendo em consideração as relações, muitas vezes de perplexidade e incompreensão, entre a intelectualidade e a Igreja. “A cultura, por dimanar imediatamente da natureza racional e social do homem, precisa sempre de uma justa liberdade para se desenvolver e de uma legítima autonomia de acção, em conformidade com os seus próprios princípios de actuar com autonomia†– afirma a Constituição Pastoral “Gaudium et Spesâ€. E continua: “Tem, por conseguinte, direito a ser respeitada e goza de uma certa inviolabilidade, com a condição, evidentemente, de salvaguardar os direitos da pessoa e da sociedade particular ou universal, dentro dos limites do bem comum†(nº 59). No fundo, a justa liberdade, a legítima autonomia e a dignidade humana é que estão em causa. “Perfeito é não quebrar/ A imaginária linha†(Sophia). A exigência de compreensão dos sinais dos tempos obriga a um esforço especial de entendimento dos elos que se estabelecem entre o mundo cristão e o mundo moderno. A incerteza e a procura de verdade suscitam a necessidade de trilharmos caminhos difíceis e arriscados, por entre dúvidas e o erros – em vez da tentação do conformismo e das verdades supostamente adquiridas, que ignoram as diferenças e a compreensão dos outros… Quando, no final, dos anos quarenta, Eduardo Lourenço elevou a bandeira da “Heterodoxiaâ€, fê-lo em nome da autonomia do espírito e da procura inconformista da verdade. A “heterodoxia é a convicção de que o real não é apenas a cabeça mordendo sem hesitações, nem a cauda devorada sem resistência, mas o inteiro movimento de morder e ser mordido, a paixão circular da vida em si mesmaâ€. E que seria a “heterodoxiaâ€, senão a “consciência absoluta da pluralidade histórica das ortodoxias, que a diversidade dos povos, das nações e dos homens suscita continuamenteâ€? E assim, culturalmente, o Absoluto tem de ser visto como luta. “Não penseis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer a paz mas a espada; vim separar o filho de seu pai; a filha de sua mãe; a nora de sua sogra; de tal modo que os inimigos do homem serão os seus familiares†(Mt. X, 34-36). E na Razão, do mesmo modo, coexiste “razão e irrazãoâ€, dúvida e paradoxo. Sempre a agonia e a luta. Este é o mundo da cultura – mundo de diversidade e de contradição. Estas são as resistências. Como diria Miguel de Unamuno, a pessoa humana é uma realidade dividida e o cristianismo uma unidade agónica. “A dúvida, mais a pascaliana do que a cartesiana ou dúvida metódica, a dúvida da vida – vida é luta -, e não o caminho – método é caminho -, supõe a dualidade do combateâ€. E G. K. Chesterton leva-nos a ver o mundo às avessa, para melhor descobrirmos a verdade –uma vez que “as pessoas deste mundo não conhecem a fundo o mundo que habitam e, por essa razão, acreditam cegamente, em meia dúzia de máximas cínicas que estão longe de ser expressão da verdadeâ€. Eis porque é importante essa luta do cristianismo e o permanente lançamento da semente da verdade, com todas as consequências incertas, que obrigam a ter em consideração “os direitos da pessoa e da sociedade particular ou universalâ€. A história é essa caminhada incessante, rumo à encruzilhada das múltiplas formas de procurar a verdade. António Alçada Baptista, na senda peregrina do nosso Fernão Mendes Pinto, costuma recordar uma dedicatória de Bernanos: “tudo o que há de bom na história do mundo foi feito pelo misterioso acordo entre a humildade e a ardente paciência do homem com a doce piedade de Deusâ€. Isto, contra os poderes instituídos, contra a omnisciência dos Doutores e contra a incurável frivolidade das pessoas sérias… E João Bénard da Costa lembra Nuno de Bragança quando este dizia acreditar em que, “para alimentarmos o medo, não há como fingirmos que não o temosâ€. Afinal, “metemos medo à criança para a meter na ordem do medo e ainda mais ao adolescente quando ele começa a nos meter medo…†Temos de entender que estamos perante nós mesmos e o mistério da Ressurreição, como encruzilhada fundamental da cultura humana – entre a Graça e a dúvida, no combate fundamental. “Mas as coisas têm máscaras – diz-nos ainda Sophia – e véus com que me enganam, e, quando eu um momento espantada me esqueço, a força perversa das coisas ata-me os braços e atira-me, prisioneira de ninguém mas só de laços, para o vazio horror das voltas do caminho†(Coral, 1950). Quantas vezes não temos a tentação de considerar como certo um sentido, quando, de facto, somos levados pelo conhecimento e pela busca da verdade, a deixá-lo ou a pô-lo sob o critério crítico? Pluralismo não é sinónimo de relativismo. Os sentidos cruzam-se, encontram-se e separam-se. E a fé fica ou desvanece-se – persiste ou esvai-se. Mas, mais importante do que toda a azáfama é a procura do sentido próprio e ecuménico da vida ou do aprofundamento religioso, para o qual o diálogo é insubstituível. Como no caminho de Emaús. Guilherme d’Oliveira Martins, Presidente do Centro Nacional de Cultura


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